1
de Abril 2012
A cidade é antiga
A cidade é antiga A história da cidade tem séculos
cada um com milhares de histórias que a transformaram Nada na cidade é simples
ou harmonioso Tudo se transformou para que a cidade crescesse desmesurada
crescesse do mar e do rio que assim a moldaram gigantesca e cosmopolita A
cidade olhou para a frente e nunca mais parou de crescer Recebeu milhares
recebeu milhões ao longo destes séculos Transformou-se foi parcialmente destruída
cresceu industrial e comercialmente cresceu com os seus sistemas de navegação
com os sistemas rodoviários ferroviários, com ideias tensões surpresas
dinamismo rotina utopia revoluções liberdade e luz A imprensa da cidade é
enérgica sempre foi mais enérgica do que os seus silêncios principalmente na
primeira metade do século dezanove A cidade cresceu com os ardinas que vendiam
jornais carregados com histórias de sexo crime assassinatos e todos os demais
vícios A imprensa vibrava com as histórias mais violentas da cidade e a cidade
vibrava Poligamias incêndios acidentes e incidentes e a avenida central sempre
vigilante como espinha dorsal da imensa urbe A cidade cresce desordenada
caótica miserável grotesca porque as pessoas que a habitavam assim a fizeram
crescer Gigantescos contrastes entre ricos e pobres entre quem é culto e quem
não possuí formação entre etnias entre todas as caóticas transmutações que o
tempo lhe acicatou O coração da cidade cresceu nesta variedade e diversidade e
assim se moldou A cidade grotesca que ama o grotesco que ainda hoje ama tudo
aquilo que é grotesco Os escritores da cidade faziam crescer a sua reputação
monstruosa nos primeiros jornais obedecendo aos gostos da época obedecendo ao
prazer de publicitar as diferenças as dores as fantasias que vendiam bem melhor
do que tudo aquilo que é normal e fútil e desinteressante E não paravam os
novos habitantes de chegar à cidade que deles se passava a alimentar para lhes
poder dar sustento esperança e alguma dignidade Todas estas imagens me são
transmitidas por uma voz de mulher africana com rosto redondo olhos negros e
cabelo curto A maior das misérias estava para chegar A cidade recebia caixões
abertos em náuticos paquetes que eram o produto acabado da desumana travessia
que os derrotava O sonho e a esperança eram o único alimento a cobrir-lhes o
pensamento
A miséria é dona da cidade e cresce por toda a parte fazendo crescer
a cidade e todos os seus lugares O coração da cidade nasceu racista e cresceu
racista moldando-lhe parte dos genes que a caracterizam As várias linguagens da
cidade desagregaram-na descaracterizaram-na e dividiram-na Crime sujidade
poluição medo e miséria a par de uma falta de esperança do tamanho do mundo
caracterizaram os sonhos da cidade no início da primeira metade do século
dezanove Avanço por entre habitantes congelados que não são os da minha cidade
Avanço pelos habitantes congelados dessa cidade antiga que me surge como um
pesadelo um violento inferno a céu aberto com milhares de habitantes perdidos e
a ordem violenta e sanguinária dos seus gangues que fazem da cidade um
permanente cenário de guerrilha urbana A cidade museu transformou os habitantes
mas não me transformou Avanço na tentativa de encontrar explicação para tudo
isto que me acontece pois nada faz sentido Esta é a voz de um homem calvo com
barba curta e cuidada de olhos castanho mel Quem sou e o que significo para a
cidade Falo sobre a cidade como se a tivesse escrito apenas ontem e a revolução
citadina está para breve
O poeta é o reunificador O poeta é o único capaz de
sentir a cidade O poeta é o único capaz de dar a conhecer o coração da cidade
Esta é a voz com rosto de Walt Whitman que viajou do passado e me fala da sua
cidade calcorreando-a e inventariando-a como mais ninguém o pode fazer Fala-me
de todas as pessoas e dos sonhos que lhes foram apagados O poeta da cidade
conhece a sua cidade e viu luz no alienado e caótico caldo citadino A minha
cidade não é a de Whitman mas todas as cidades são as de Whitman Foi ele que
transformou os habitantes petrificados da minha cidade nos habitantes
petrificados da sua Nova Iorque A voz do poeta é única como a cultura do desejo
é única como toda a fantasia e curiosidade e a selvagem e pura busca da verdade
são únicas A fantasia desse anónimo amante da cidade é a de que através do seu
amor se pode libertar A cidade sexual a cidade do prazer do prazer libertador
em contraponto com o poder castrador do cimento do tijolo da argamassa do
edifício da estrada da avenida Quem vê assim amantes no mais improvável dos
elementos da cidade é o maior dos amantes da cidade Quem ama a cidade miserável
deprimente e injusta é um amante da esperança e do coração dos homens Esta é a
cidade dos desempregados dos esfomeados dos desfavorecidos dos injustiçados dos
doentes Esta é a cidade que cresce cinzenta e desgovernada A população vive
empacotada nos mais repugnantes e claustrofóbicos espaços e sobrevive na pior
das condições A população não respira só respira o ar asfixiante de todas as
maleitas da cidade Esta é a cidade que cresce anónima desigual e sem tempo para
desperdiçar A cidade tem de renascer tem de se reinventar tem de deixar de
sangrar internamente para que os seus habitantes deixem de sangrar internamente
E a cidade reinventa-se em quadros de verde e de esperança através do maior de
todos os parques citadinos A cidade bebe essa esperança e tenta calar os ruídos
nesta sua reinvenção Mas este parque não é sinal de libertação o parque foi
pensado para quem se sabe comportar A cidade foi engolida pela história e a
história da cidade transformou-se por todos aqueles que a reinventaram A cidade
não para a cidade nunca para como a noite termina para o dia nascer As pessoas
petrificadas da minha cidade regressaram Walt Whitman diz-me que a linguagem
dos antigos habitantes da cidade é a mesma dos de agora A cidade escraviza e
vive desse próspero raciocínio de que se alimenta A cidade enlouqueceu O campo
que alimenta a cidade enlouqueceu o mundo enlouqueceu e o poeta serviu a cidade
e o campo nessa loucura A loucura fez crescer a cidade louca que louca cresceu
e enegreceu O mundo a cidade e o campo enlouqueceram e os loucos queimam-na destroem-na
Edifícios pilhados esperanças destroçadas vidas desfeitas a vingarem-se da
cidade e das suas entranhas As multidões atacam os empresários atacam os donos
da imprensa atacam os banqueiros e os corretores atacam todos os que possuem
cores e visões diferentes da multidão Os que atacam estão desesperados e com
ódio no olhar atacam o coração da cidade que agora está queimada negra e
anárquica O réptil venenoso que habita na cabeça de cada habitante da cidade
alimentou-se do veneno da cidade O vermelho toma conta do coração negro da
cidade A cidade está em guerra a cidade é o próprio inferno que aqui se
edificou Pais e filhos e primos e irmãos lutam uns contra outros nas praças nas
avenidas nas ruas e nas esquinas esventradas da cidade do poeta que não sabe o
que dizer O poeta não consegue explicar a cidade doente que não é justa porque
nunca o foi e nunca o será O verdadeiro poder da cidade está na sua capacidade
de sobrevivência Como sobrevive a cidade a este inferno que arde no centro do
seu coração A cidade pobre e rica é vergonhosa ou possuiu carácter A cidade
pobre e rica é violenta ou apaziguadora A cidade não fala pois não precisa
Todos os habitantes falam pela cidade O poeta duvida da cidade mais uma vez São
negras negras negras as nuvens que pintam como serpentes o céu da cidade A
cidade sem futuro tem passado e este presente Quem são os que mandam na cidade
nesta cidade de ricos e de pobres nesta cidade das luzes e das sombras cidade
do sol e da escuridão Esta é a cidade dos desesperos de todas as misérias da
mais profunda e gritante de todas as misérias A cidade renascerá como nunca A
cidade reinventa-se máquina reinventa-se cidade futurista e fumegante A cidade
reinventa-se gananciosa diabólica corrupta cruel desgovernada O monstro sem
ética nem moral renasce cinzento poderoso e explosivo A cidade cresce imensa
para lá das margens dos rios cresce para norte para este para sul e para oeste
Para todo o lado a cidade cresce e cresce para lugares onde ainda não era a
cidade Esta cidade não é amada e não ama O antigo habitante da cidade não a
conhece nem a cidade o reconhece
A cidade cresceu para lá do rio e foi ligada à
sua outra parte em crescimento A cidade da ponte que nasce gigantesca e maior
do que todas as outras pontes que após esta nascerão A ponte da cidade nasceu
corrupta como as relações entre os poderosos da cidade A cidade corrupta
fraudulenta desesperada vilipendiada pobre sempre pobre doente e escura A
cidade fraqueja é suja tão suja tão desgraçadamente suja que não sei como
consigo caminhar A ponte enche o céu por cima de quem habita a cidade A ponte
pertence à cidade e a cidade à ponte A cidade cosmopolita dança finalmente no
parque verde fora dos esgotos lamacentos dos guetos escuros e mal cheirosos A
cidade dança com medo vive no medo vive nervosa vive sombria e mata a esperança
Esta é a voz de um homem idoso com cabelo branco curto bigode aristocrático
olhos vivos inteligentes nariz imenso redondo e vermelho Como os escuto Como
ouço não sossego Escuto sempre e sempre e sempre e já não consigo imaginar esta
cidade sem vozes As vozes falam-me tanto sobre a cidade que só podem pertencer
à cidade e algumas dessas vozes são só minhas A história da cidade passa a ser
a história da ponte e do rio que dividia as duas partes da cidade Esse é um rio
que já não divide A cidade embelezou-se pois a ponte que une a cidade é bela e
forte e cresceu vigorosa através do trabalho de quem a montou A cidade e a
ponte são uma só esperança Ricos e poderosos fazem crescer este paraíso urbano
e fazem crescer as diferenças entre os que têm e os que não têm Todos parados
Os habitantes da cidade permanecem petrificados Acredito que isto é uma manobra
programada pela cidade para me enlouquecer definitivamente Permaneço
minimamente saudável pois escuto as palavras que os meus rostos me cantam Esta
voz tem rosto de criança com cabelos encaracolados revoltos e sujos com olhos
da cor da esperança O otimismo do poeta não contagiou a cidade A cidade não se
permite a otimismos O poeta outro poeta quase deixou que a cidade o derrotasse
E o flash das máquinas mostrou toda a escuridão A cidade escondida dos
fantasmas escondidos dos passageiros do inferno A cidade dos miseráveis da mais
horrível e miserável ruína da mais horrível e miserável pobreza A cidade que é
dos homens e não é dos homens a cidade dos meninos abandonados a cidade dos que
sendo habitantes da cidade são habitantes dos vários infernos onde apodrece a
cidade A cidade das doenças amigas pois matam e trazem finalmente o paraíso aos
que falecem A cidade doente a cidade que despoleta as doenças com infinita
paciência enchendo caixões enchendo cemitérios E o livro do poeta ajuda a
cidade que não ajudou o poeta porque a cidade é tudo menos justa A cidade é
forma é arco é edifício é estátua é sombra é sombra projetada em outras sombras
segundo as palavras do primeiro poeta que faleceu Em tão pouco tempo o poeta
viu a cidade florescer com esperança com os olhos que só um poeta pode ter A
cidade ecológica cultural e ambiciosa que se reinventa Glória para a cidade e
glória ao poder infinito dos que nela mandam A cidade esperança nasce com o fim
de uma era e o início de outra A cidade cresce gigante muito para além da
imaginação dos que a habitam A cidade física cresce como cresce a onda dos que
a desejam alcançar Essa onda é a primeira de muitas marés que nunca terminarão
A cidade misteriosa a cidade densa a cidade dos que a ela chegam A cidade que
nunca é pois está em permanente transformação O que é a cidade e de quem é a
cidade Os poetas compreendem a mudança da cidade grande tão grande Tantas foram
as lágrimas vertidas por quem chegou à cidade por quem chegou à cidade e
sobreviveu A cidade é cidade criminosa cidade doente A cidade louca desesperada
traumatizada A cidade dos esquecidos e dos que jamais regressarão Todos os
países pertencem à cidade que se transforma que cresce que os recebe como se
fosse o céu A cidade recebe-os como se não existisse na terra mas sim no céu A
cidade das estruturas verticais que se erguem cada vez mais altas Erguem-se
cada vez mais imponentes Erguem-se e fazem da cidade a maior de todas as
estruturas A cidade gigantesca colossal vasta tão vasta que as energias se
esgotam para tentar encontrar palavras adequadas que a descrevam A cidade
templo esta cidade templo continua a perseguir-me como uma sombra louca e
fantasmagórica Nada se mexe nada se move nada se movimenta ou disso dá sinal A
cidade metrópole inaudita que não só se transforma como se deixa transformar A
cidade dos milhões que a invadiram e que se tornaram tão frenéticos como a
cidade Os habitantes são regulados pelos ritmos frenéticos da cidade moderna e
cosmopolita que os organiza e automatiza e que assusta e que afinal não é o céu
que aguardavam As ruas da cidade são bazares são mercados colossais são
virtudes aceleradas sem descanso frenéticas a sugar os sonhos dos novos
habitantes A cidade disseca as esperanças e as energias e coloca todos contra
todos velhos contra velhos e acima de tudo velhos contra novos corações contra
corações imagens e rostos de ontem contra imagens e rostos de agora As ruas da
cidade estão furiosas apinhadas e confusas Aqui se nasce se vive se sobrevive A
cidade caprichosa que engole os habitantes transporta-os e castiga-os Os que
nela vivem conhecem finalmente a verdadeira dimensão desta entidade A cidade
das estações por onde tantos passam por onde são destilados onde se iniciam e
terminam as viagens de todos os destinos De nada interessa tanta luz tanta
ponte tantos caminhos tão rápidas ligações O problema da cidade vive com a
cidade e ela galvaniza-se nestes ciclos desmesurados de contrastes A cidade
sempre será uma cidade de contrastes de corações partidos e afastados A cidade
escraviza a cidade tem escravos que não podem falar nos seus postos de trabalho
que não se podem atrasar que não podem parar de produzir Esta é uma voz com
rosto de mulher de tez pálida penteado esculpido em escultóricas tranças
apanhadas atrás da cabeça numa caprichosa e perfeita banana de cabelo O olhar é
cansado exausto negro esperançoso e inquieto A cidade exausta a cidade que
desespera todos os que nela vivem e trabalham quem nela respira quem nela ainda
acredita A cidade mata de cansaço quem trabalha mata de dor transforma os
sonhos no maior dos pesadelos A cidade é um mar de chamas é um inferno que
nenhum bombeiro consegue debelar A cidade dos que voam para escapar à morte e
que a abraçam A cidade das trevas e das tragédias sem igual A cidade surda
pesada infinita A cidade petrificou todos os que nela habitam sem pestanejar e
mantém-me acordado para que escute as minhas vozes enquanto caminho sem rumo no
meio da quietude e do silêncio Escuto as memórias dos mortos de todos estes
mortos que a cidade fez desaparecer Choro pelas vidas de todos os que a cidade
fez desaparecer Choro pelos escravos da cidade pelos escravos de todas as
cidades choro pelos que padecem nos horrores que crescem nos corações da cidade
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