2
de Abril 2012
A cidade da crise
A cidade da crise A cidade de todas as crises
cíclicas imensas universais gigantescas Em cada esquina cresce a serpente
humana dos que procuram alimento para sobreviver A cidade que não se importa
que cresce violenta grotesca terrível inabalável na sua petrificada violência
de ferro cimento vidro e betão Os habitantes da minha cidade transformaram-se
de novo para voltarem a ser os habitantes da cidade do poeta Esfomeados
ordenados desorientados organizados em grupos descansam por instantes do seu
enorme desespero A cidade está parada e estrangula toda a fé A cidade é
implacável e irredutível nesta sua escuridão O poder da cidade encontra-se nos
desejos que ela fabrica Quem a pretende governar quem a pensa poder governar é
engolido num frenesi imenso que faz delirar a cidade A máquina corrupta teatral
mediática que se reconstrói que se reinventa que se impõe que é de todos pois
todos assim a fizeram crescer A cidade diz-me tudo o que escuto ao caminhar A
cidade das promessas conta desta forma a trágica história Hospitais estradas
escolas pontes ferrovias túneis viadutos museus bibliotecas avenidas estações
aeroportos parques aquedutos portos prédios estradas e autoestradas ligações
ferroviárias o paraíso cinzento-escuro do asfalto e dos automóveis amigos brilhantes
velozes e reluzentes A cidade engorda de prazer ao som vibrante do objeto
poluente que lhe alimenta as entranhas Viva o automóvel e cresça a cidade veloz
à velocidade estonteante do objeto rodante A cidade das estradas e autoestradas
e avenidas ruas largos cruzamentos rotundas poesia urbana poesia mecânica
poesia metálica complexa vascular arterial Cimento a poesia do ferro do aço e
do cimento A cidade visionária transformadora imperial e futurista A cidade dos
que vivem na rua porque a cidade é o lar dos que vivem na rua dos que vivem no
bairro dos que vivem agora e dos que ontem viveram na rua A cidade será sempre
o seu lar A cidade dos civis e dos militares A cidade dos que agradecem terem
regressado à cidade Viajo anónimo no meio de milhões no meio dos sonhos de
milhões A cidade será sempre a cidade de todas as esperanças e não apenas a
cidade de uma só esperança A cidade engole os habitantes e tira mais depressa
do que oferece A cidade engole os habitantes que foram engolidos pelos objetos
rolantes Os habitantes já não são os donos das ruas da cidade Os automóveis
tomaram conta das ruas matando-as tomaram conta da grande avenida da
autoestrada do viaduto da gigantesca galeria e fizeram renascer a cidade como
um esgoto de escuras entranhas Esta é a nova cidade do vidro da transparência
do andaime da forma paralelepipédica da forma prismática vertical imensa Os
novos pobres chegam à cidade e tomam conta dos seus pedaços mais sujos mais
negros mais distantes e degradantes A cidade é uma tragédia e tudo isto me é
comunicado por uma voz com rosto de homem idoso perdido de cabelos brancos
marcado por muitas rugas num rosto queimado barba longa grisalha olhos azuis e profundas
olheiras A cidade que já não é industrial que já não é esperançosa que já não é
o que foi mas que deseja ser tudo aquilo que ainda pode ser O homem pertence à
cidade e alimenta o génio e a grandeza da cidade E o homem é louco e a cidade é
o homem louco que a esventra destrói constrói reconstrói Recria tudo o que na
cidade ensandece recria a desgraça do subúrbio recria redesenha reconstrói
reinventa faz crescer faz desaparecer destrói para segregar para desumanizar
mais uma vez outra vez uma décima vez uma centésima vez uma milésima vez uma
centésima milionésima vez A cidade dos cada vez mais ricos e poderosos que
afasta os desfavorecidos para guetos e subúrbios cada vez mais distantes A
cidade afasta os habitantes a quem destrói todas as raízes para se
descaracterizar para rejuvenescer orgânica desagregada descaracterizada
desumana e formatada Renasce não-cidade renasce coisa não-humana A cidade
urbana do desastre A cidade automóvel caótica horrífica poluída suburbana
catastrófica cinzenta escura quente inexpressiva corroída louca e que
enlouquece Esta é a cidade a quem o coração foi arrancado vezes e vezes e vezes
sem conta A estrada está entranhada no centro do coração da cidade A estrada
corta esventra e destrói o que resta do coração da cidade Toda a cidade é do
homem ditador que a deseja e quer deixar riscado para sempre o coração da cidade
Viva o alcatrão antissocial viva o cimento o imenso o anti-humano viva tudo o
que é catastrófico para engrandecer a nova alma da cidade porque a cidade deve
ser coisa sem alma Viva o império do alcatrão do cimento do petróleo da
mobilidade que agrilhoa e divide a cidade que a esmigalha que a destroça e que
vira a cidade contra aqueles a quem a cidade deveria servir Constrói constrói
destrói reconstrói destrói constrói reconstrói destrói constrói destrói
reconstrói destrói destrói desumaniza intimida desagrega destrói destrói
constrói reconstrói Viva o império da cidade Viva o império do homem-cinzento
do homem autoestrada do homem que queria ser cidade que queria ser esgoto
porque o homem destrói destrói reconstrói devasta constrói definha definha e a
cidade definha Cresce mas morre Cresce mas morre cada dia mais um pedaço Cresce
mas fica todos os dias cada vez mais minúscula cada vez mais parada mais
cinzenta mais morta mais inacabada mais museu A cidade dos ciclos e dos
pesadelos e dos desesperos dos castanhos e cinzentos não mais dos verdes e dos
azuis Para que serve a cidade para que serve este pesadelo gigantesco inerte e
esventrado desumano que agora volta a petrificar todos os que nela habitam O
homem mata a cidade e a cidade retribui O homem acredita que o que é moderno é
melhor e a cidade retribui A idade de tudo o que era sagrado na cidade acabou e
a cidade retribuirá Onde se encontra o que há de sagrado no coração da cidade
onde se encontra o sagrado na cidade O que desejamos da cidade Todos a vandalizam
Todos a matam e a cidade matará o homem que mata a cidade Esta é a voz com
rosto de velho cansado ambicioso ganancioso cruel de olhos castanhos fundos de
olhar desumano que deseja construir o coração no cidade A cidade está estripada
e deve ser destruída para que se possa vingar contra quem a desejou assim Eis a
cidade desumana que não é velha nem é nova Esta é a cidade do ser-humano Esta é
a cidade que caminha e faz caminhar Os habitantes da minha cidade começam a
acordar Os habitantes da minha cidade não percebem esta momentânea filosofia de
paragem Eu não entendo nada do que se passa O melhor mesmo é continuar a
caminhar como se nada tivesse acontecido O poder da cidade está no poder das
pessoas e não no poder da pessoa poderosa que julga pensar pela cidade A cidade
existe e ainda pode existir se for bem pensada por quem nela habita O espaço
urbano da cidade pensa moderno pensa matar o passado pensa matar
definitivamente o coração da cidade e a cidade morde A cidade que não deseja
escurecer morde e ataca Quer manter-se na essência daquilo que ainda é A cidade
está viva tão viva e tão imensa tão rápida A cidade já se esqueceu de quem
verdadeiramente é O subúrbio é a cidade o gueto é a cidade a miséria e a
degradação são cidade as sombras mais do que a luz são cidade a corrupção e a
injustiça são cidade o desemprego e a poluição são cidade O povo em constante
conflito é a cidade Esta voz tem rosto de mulher jovem de nariz escultórico
cabelo ruivo ondulado com olhos castanhos profundos e pele clara e bem tratada
Esta voz é profunda intensa rica e melódica A cidade não para A cidade é eterna
As escolas dos bairros degradados explodem e a cidade explode num caos urbano
sem precedentes A miséria explode os prédios explodem e a cidade implode A
cidade vale mais destruída do que inteira A cidade urbana e suburbana é uma
doença moderna sem fim uma doença louca cíclica e caótica Onde estão as
crianças da cidade Onde estão todas as crianças e jovens da cidade Onde estão
os idosos os doentes e os loucos da cidade Onde estão todos Seguem-me
encarcerados nas viaturas imobilizadas estão de olhos colados aos vidros Olhos
tristes destroçados e cansados Onde para a cidade verde e azul A cidade foi
pensada para dar lucro para promover o lucro para nunca parar de crescer de
desumanizar e de arruinar Sinto esta doença da cidade que me afeta e corrói A
cidade irá explodir irá morrer ou irá sobreviver A cidade é tudo aquilo que não
devia ser mas também é aquilo que ainda pode ser A cidade nasceu cresceu viveu
mas não sabe como sobreviver A cidade extraordinária é contraditória e sofre A
cidade encontra-se na cabeça do todos os habitantes do globo Eu ainda não fui
habitante da cidade mas sou habitante da cidade porque sou habitante do mundo
As cidades das torres que vibram e clamam poder e virilidade Os habitantes
movimentam-se cavalgam nos seus cavalos de metal como em todos os outros dias
Viva a cidade moderna futurista poderosa global vaidosa ambiciosa engenhosa
empreendedora humana Viva a cidade humana construída por seres humanos
audaciosos inteligentes engenhosos experientes corajosos e capazes como nenhum
outro ser humano Viva a cidade dos prodigiosamente capazes Viva a cidade que
alberga e que aparentemente protege os que nela habitam Viva a cidade que
depois de ferida debilitada frustrada atacada e descrente cresce com formas
impossíveis Viva a cidade imensa global Viva a cidade de todas as liberdades
Viva a cidade paradoxal
O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada
tivesse acontecido
FIM
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