domingo, 8 de abril de 2012

A cidade da crise




2 de Abril 2012



A cidade da crise


A cidade da crise A cidade de todas as crises cíclicas imensas universais gigantescas Em cada esquina cresce a serpente humana dos que procuram alimento para sobreviver A cidade que não se importa que cresce violenta grotesca terrível inabalável na sua petrificada violência de ferro cimento vidro e betão Os habitantes da minha cidade transformaram-se de novo para voltarem a ser os habitantes da cidade do poeta Esfomeados ordenados desorientados organizados em grupos descansam por instantes do seu enorme desespero A cidade está parada e estrangula toda a fé A cidade é implacável e irredutível nesta sua escuridão O poder da cidade encontra-se nos desejos que ela fabrica Quem a pretende governar quem a pensa poder governar é engolido num frenesi imenso que faz delirar a cidade A máquina corrupta teatral mediática que se reconstrói que se reinventa que se impõe que é de todos pois todos assim a fizeram crescer A cidade diz-me tudo o que escuto ao caminhar A cidade das promessas conta desta forma a trágica história Hospitais estradas escolas pontes ferrovias túneis viadutos museus bibliotecas avenidas estações aeroportos parques aquedutos portos prédios estradas e autoestradas ligações ferroviárias o paraíso cinzento-escuro do asfalto e dos automóveis amigos brilhantes velozes e reluzentes A cidade engorda de prazer ao som vibrante do objeto poluente que lhe alimenta as entranhas Viva o automóvel e cresça a cidade veloz à velocidade estonteante do objeto rodante A cidade das estradas e autoestradas e avenidas ruas largos cruzamentos rotundas poesia urbana poesia mecânica poesia metálica complexa vascular arterial Cimento a poesia do ferro do aço e do cimento A cidade visionária transformadora imperial e futurista A cidade dos que vivem na rua porque a cidade é o lar dos que vivem na rua dos que vivem no bairro dos que vivem agora e dos que ontem viveram na rua A cidade será sempre o seu lar A cidade dos civis e dos militares A cidade dos que agradecem terem regressado à cidade Viajo anónimo no meio de milhões no meio dos sonhos de milhões A cidade será sempre a cidade de todas as esperanças e não apenas a cidade de uma só esperança A cidade engole os habitantes e tira mais depressa do que oferece A cidade engole os habitantes que foram engolidos pelos objetos rolantes Os habitantes já não são os donos das ruas da cidade Os automóveis tomaram conta das ruas matando-as tomaram conta da grande avenida da autoestrada do viaduto da gigantesca galeria e fizeram renascer a cidade como um esgoto de escuras entranhas Esta é a nova cidade do vidro da transparência do andaime da forma paralelepipédica da forma prismática vertical imensa Os novos pobres chegam à cidade e tomam conta dos seus pedaços mais sujos mais negros mais distantes e degradantes A cidade é uma tragédia e tudo isto me é comunicado por uma voz com rosto de homem idoso perdido de cabelos brancos marcado por muitas rugas num rosto queimado barba longa grisalha olhos azuis e profundas olheiras A cidade que já não é industrial que já não é esperançosa que já não é o que foi mas que deseja ser tudo aquilo que ainda pode ser O homem pertence à cidade e alimenta o génio e a grandeza da cidade E o homem é louco e a cidade é o homem louco que a esventra destrói constrói reconstrói Recria tudo o que na cidade ensandece recria a desgraça do subúrbio recria redesenha reconstrói reinventa faz crescer faz desaparecer destrói para segregar para desumanizar mais uma vez outra vez uma décima vez uma centésima vez uma milésima vez uma centésima milionésima vez A cidade dos cada vez mais ricos e poderosos que afasta os desfavorecidos para guetos e subúrbios cada vez mais distantes A cidade afasta os habitantes a quem destrói todas as raízes para se descaracterizar para rejuvenescer orgânica desagregada descaracterizada desumana e formatada Renasce não-cidade renasce coisa não-humana A cidade urbana do desastre A cidade automóvel caótica horrífica poluída suburbana catastrófica cinzenta escura quente inexpressiva corroída louca e que enlouquece Esta é a cidade a quem o coração foi arrancado vezes e vezes e vezes sem conta A estrada está entranhada no centro do coração da cidade A estrada corta esventra e destrói o que resta do coração da cidade Toda a cidade é do homem ditador que a deseja e quer deixar riscado para sempre o coração da cidade Viva o alcatrão antissocial viva o cimento o imenso o anti-humano viva tudo o que é catastrófico para engrandecer a nova alma da cidade porque a cidade deve ser coisa sem alma Viva o império do alcatrão do cimento do petróleo da mobilidade que agrilhoa e divide a cidade que a esmigalha que a destroça e que vira a cidade contra aqueles a quem a cidade deveria servir Constrói constrói destrói reconstrói destrói constrói reconstrói destrói constrói destrói reconstrói destrói destrói desumaniza intimida desagrega destrói destrói constrói reconstrói Viva o império da cidade Viva o império do homem-cinzento do homem autoestrada do homem que queria ser cidade que queria ser esgoto porque o homem destrói destrói reconstrói devasta constrói definha definha e a cidade definha Cresce mas morre Cresce mas morre cada dia mais um pedaço Cresce mas fica todos os dias cada vez mais minúscula cada vez mais parada mais cinzenta mais morta mais inacabada mais museu A cidade dos ciclos e dos pesadelos e dos desesperos dos castanhos e cinzentos não mais dos verdes e dos azuis Para que serve a cidade para que serve este pesadelo gigantesco inerte e esventrado desumano que agora volta a petrificar todos os que nela habitam O homem mata a cidade e a cidade retribui O homem acredita que o que é moderno é melhor e a cidade retribui A idade de tudo o que era sagrado na cidade acabou e a cidade retribuirá Onde se encontra o que há de sagrado no coração da cidade onde se encontra o sagrado na cidade O que desejamos da cidade Todos a vandalizam Todos a matam e a cidade matará o homem que mata a cidade Esta é a voz com rosto de velho cansado ambicioso ganancioso cruel de olhos castanhos fundos de olhar desumano que deseja construir o coração no cidade A cidade está estripada e deve ser destruída para que se possa vingar contra quem a desejou assim Eis a cidade desumana que não é velha nem é nova Esta é a cidade do ser-humano Esta é a cidade que caminha e faz caminhar Os habitantes da minha cidade começam a acordar Os habitantes da minha cidade não percebem esta momentânea filosofia de paragem Eu não entendo nada do que se passa O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada tivesse acontecido O poder da cidade está no poder das pessoas e não no poder da pessoa poderosa que julga pensar pela cidade A cidade existe e ainda pode existir se for bem pensada por quem nela habita O espaço urbano da cidade pensa moderno pensa matar o passado pensa matar definitivamente o coração da cidade e a cidade morde A cidade que não deseja escurecer morde e ataca Quer manter-se na essência daquilo que ainda é A cidade está viva tão viva e tão imensa tão rápida A cidade já se esqueceu de quem verdadeiramente é O subúrbio é a cidade o gueto é a cidade a miséria e a degradação são cidade as sombras mais do que a luz são cidade a corrupção e a injustiça são cidade o desemprego e a poluição são cidade O povo em constante conflito é a cidade Esta voz tem rosto de mulher jovem de nariz escultórico cabelo ruivo ondulado com olhos castanhos profundos e pele clara e bem tratada Esta voz é profunda intensa rica e melódica A cidade não para A cidade é eterna As escolas dos bairros degradados explodem e a cidade explode num caos urbano sem precedentes A miséria explode os prédios explodem e a cidade implode A cidade vale mais destruída do que inteira A cidade urbana e suburbana é uma doença moderna sem fim uma doença louca cíclica e caótica Onde estão as crianças da cidade Onde estão todas as crianças e jovens da cidade Onde estão os idosos os doentes e os loucos da cidade Onde estão todos Seguem-me encarcerados nas viaturas imobilizadas estão de olhos colados aos vidros Olhos tristes destroçados e cansados Onde para a cidade verde e azul A cidade foi pensada para dar lucro para promover o lucro para nunca parar de crescer de desumanizar e de arruinar Sinto esta doença da cidade que me afeta e corrói A cidade irá explodir irá morrer ou irá sobreviver A cidade é tudo aquilo que não devia ser mas também é aquilo que ainda pode ser A cidade nasceu cresceu viveu mas não sabe como sobreviver A cidade extraordinária é contraditória e sofre A cidade encontra-se na cabeça do todos os habitantes do globo Eu ainda não fui habitante da cidade mas sou habitante da cidade porque sou habitante do mundo As cidades das torres que vibram e clamam poder e virilidade Os habitantes movimentam-se cavalgam nos seus cavalos de metal como em todos os outros dias Viva a cidade moderna futurista poderosa global vaidosa ambiciosa engenhosa empreendedora humana Viva a cidade humana construída por seres humanos audaciosos inteligentes engenhosos experientes corajosos e capazes como nenhum outro ser humano Viva a cidade dos prodigiosamente capazes Viva a cidade que alberga e que aparentemente protege os que nela habitam Viva a cidade que depois de ferida debilitada frustrada atacada e descrente cresce com formas impossíveis Viva a cidade imensa global Viva a cidade de todas as liberdades Viva a cidade paradoxal

O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada tivesse acontecido



FIM

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