quinta-feira, 29 de março de 2012

Abri a Porta


23 de Março 2012



Abri a porta


Abri a porta Na avenida o caos habitual Os animais metálicos tentam chegar aos destinos mas não avançam mais que uma mera dezena de metros por minuto O calor associa-se ao cheiro urbano do tráfego diário Preciso do café da manhã, de passar os olhos por um pedaço de notícia, mas para quê se elas se repetem sempre tão iguais As pessoas nos passeios são um formigueiro humano que avança como os animais metálicos Em rituais ensaiados, sobem pela direita, descem pela esquerda numa interiorizada cópia do sistema rodoviário, derretem-se no asfalto, derretem-se na calçada A ordem de todas as coisas, a ordem desordenada da lei do mais forte a ordem do distraído que segue alheio à rotina, a ordem dos animais semeados perdidos na beira dos passeios, a ordem dos semáforos dos sinais visuais e sonoros das sirenes dos que querem orientar a ordem dos animais metálicos depositados aleatoriamente nos passeios entre espaços impossíveis a ordem da ousada condutora apressada de filhos carregados de filhos empurrados de filhos carregados com quilos de mochilas às costas sabedoria ocidental a ordem dos funcionários camarários que limpam que desesperam quem deseja avançar e segue atrás do gigante triturador a ordem dos relógios a ordem da discussão familiar no banco da frente a ordem da fome que se mata com a palhinha introduzida no pacote de leite acastanhado adocicado amigo no banco de trás a ordem dos pássaros metálicos gigantes que guincham os últimos segredos nos últimos segundos da viagem ao passar mesmo por cima da avenida Não sei como aqui se dorme se acorda se descansa A ordem dos mendigos e dos loucos que como mendigos pedem a quem passa dois ou três segundos de atenção a ordem desordenada dos esperançosos estudantes com brilho nos rostos que suspiram horas perdidas nas desalinhadas filas dos transportes A ordem das estações debaixo do solo a mesma estação que os espera no final da viagem a ordem de tudo aquilo que se constrói cada dia desde que se acorda desde que o vento bate nas cortinas da janela mal fechada dos elevadores que não trabalham a ordem gasta das fachadas dos velhos edifícios da avenida dos cafés que lhe conhecem os vícios de todos os viciados das árvores hipóteses verde esperança que respira citadina citadinas como todas estas que se perfilam ao subir a calçada apinhada A Rute está atrasada como sempre mais uma vez Tem sido assim nestes últimos dias Já cansa tanto atraso Obedece a outras ordens, os seus lugares já são outros e não responde às mensagens A Rute preocupa-me pois já não é capaz de falar sobre as coisas Agora só escuta É mau quando só escutamos A Rute não devia pensar tanto na vida O pessoal dos correios esteve aqui ontem a fazer uma mini manifestação de protesto contra o encerramento de mais uma dependência Andam a fechar tudo, a acabar com tudo A Rute estava habituada a fazer este trajecto e esta vida há mais de trinta e oito anos e agora querem enviar os trabalhadores para muito longe daqui, para outras estações e dependências muito afastadas Aos mais antigos convidaram acenaram com a reforma antecipada, ou então que desaparecessem A Rute nunca mais chega e não atende o telemóvel O Carlos Alberto tinha-a convidado para o cinema mas ela nem assim se mexeu A boca não deixa, os olhos não deixam mas, acima de tudo, a idade não deixa Vou sentar-me ali junto ao jardim Os bancos estão gastos como o tempo, como eu, como os cães vadios que parece que nascem por aqui Vou ligar ao Arnaldo, pode ser que já tenha acordado Nada Que bem que me sabe este café Estamos todos cada vez mais sós, como a Rute, como o Arnaldo, como o Carlos Alberto e como eu Caramba Mas que raio de conversa de velhos Tudo parece velho, gasto, louco, cansado Os putos correm com as mochilas às costas Faltaram à escola Devem gostar do que por lá ensinam Preferem correr em grupos, vadiar por aqui Que inveja lhes tenho, como gostava de poder ser como eles, pecar como eles Maldição do tabaco, malabaristas do eu contra o mundo que não os conhece Não sabem como era antigamente, não lhes interessa o ontem, nem o amanhã e o hoje, para alguns, veste-se de tristeza, de fome e de porrada Ordens dadas umas atrás de outras que devem cumprir Está bem está Fartinhos dessa merda toda, das conversas desses chatos que só moem a cabeça A utilidade de um beijo é que devia ser ensinada, a utilidade de uma falta bem dada, de andar de metro à deriva das estações, de fugir A Rute não está bem Vai ter de ser ela a ligar Já não me apetece este banco Vou continuar a caminhar pela avenida mas aborrece-me o não conseguir parar de pensar, parece que todas as minhas ideias e pensamentos têm uma voz e um rosto Todas falam e é um cansaço terrível logo ao fim da manhã Vejo-as com caras de velhas que não se calam, vozes com caras de funcionários pálidos de óculos e de pele baça sentados em cadeirões e que não param de teclar, a mão direita agarra e brinca com um telemóvel esperando que toque, esperando não sei muito bem o quê Vejo vozes com caras, mais de mil e um rostos, rostos de putos, de jovens, de operários fabris, de pastores, rostos de políticos, de escritores, de psiquiatras e de empregados de café, vejo uma voz com a cara de uma pequena criança que ainda mal consegue andar, em todas as minhas vozes eu vejo um rosto É uma canseira Por isso olho para os carros que não avançam na avenida, olho para as montras gastas, para todo este povo que se movimenta O que será que pensam, porque será que pensam, ou não pensam, o que os preocupa, porque se preocupam Precisava de descansar mas não consigo resistir ao apelo das escadas do prédio, descer e vir para a avenida passear Outros como eu também andam por aí meio perdidos, sentam-se, distraem-se com conversas fúteis sobre coisas inúteis, sobre cada coisa mais inútil que chega a meter dó Detesto quando as vozes me dizem estas coisas Mais valia dar uso à receita que me passou o colega do meu filho Tanta gente fala e pensa saber sobre tanta coisa, pensa saber sobre tudo e sobre mais alguma coisa, até dói E a Rute que o diga Não me responde Continua com o telemóvel desligado Os autocarros seguem tão apinhados que é difícil perceber como se movimentam Avançam alguns metros e param junto aos outros metálicos animais que estão anichados a aguardar a ditadura dos semáforos A cidade caótica engole-os, esvaziou-lhes as almas Vou ligar ao Arnaldo mais uma vez São quase dez e meia da manhã O que terá andado ontem a fazer para ainda estar a dormir Nada Desisto Quero lá saber Eles depois que me liguem O avião passou tão rente ao prédio que o fez tremer Vou descer a avenida até ao teatro São pouco mais de quatro quilómetros Gosto de passar junto ao relvado que se estende à frente do edifício Os estudantes universitários gostam de se estender ali como se estivessem na praia e eu gosto de os ver assim Depois regresso ou então continuo o percurso até ao estádio universitário Vou recordar os meus tempos de corredor Divertia-me a correr como criança, sujava os pés e as pernas nos corta-matos e alcançava sempre a meta na primeira metade da tabela Nunca desisti uma única prova, conclui-as todas Os carros continuam parados Que loucura Ninguém se mexe no trânsito caótico O que será que os impede de largarem a porcaria dos automóveis e caminharem ao longo da avenida Trago aqui na carteira a receita por aviar, vou deixar de ser casmurro e vou arranjar os comprimidos O meu Arsénio está cansado de me avisar e ficou ofendido com a minha teimosia Deixá-lo Lembro-lhe que tem a quem sair Detesto quando as vozes ditadoras me dizem estas coisas Pararam de falar comigo por instantes Devo estar a melhorar Era bom se assim acontecesse Na brincadeira, o rapaz até me disse para eu começar a escrever, para apontar num caderno tudo aquilo que as vozes me dizem A minha mão não iria conseguir parar tantas são as palavras abertas no interior da cabeça E depois, onde ficava tempo para os passeios, para as conversas com a Rute, com o Carlos Alberto e com o Arnaldo Eu não quero saber o que me dizem as palavras, a maior parte do tempo são disparates como este agora Disparate, um disparate pegado Querem lá ver que tinha de andar sempre carregado com um caderno e caneta para apontar todos os pensamentos Tenho lá cabeça para isso e não quero saber do que as vozes me dizem, estas vozes com rosto que nunca me abandonaram desde que me conheço Uma coisa prometo Vou comprar um caderno e uma caneta, não são pesados e passam-me a fazer companhia Pode ser que depois, com o medo e a vergonha, as chatas das palavras definhem Não ia precisar de comprimidos Talvez a ideia do Arsénio tenha pernas para andar, quem sabe Esta voz tem cara de senhor forte, muito forte, cabelo curto, grisalho, bigode, pescoço curto e vigoroso, olhos castanhos, olhar sério e ausente O que é que isto interessa Filas intermináveis de pessoas nas paragens dos autocarros Que dia A esta hora, noutras ocasiões, não é costume estar tanta gente à espera A cidade consome e mal trata e as faces de todos os que esperam estão verdes e amareladas, derrotadas por um cansaço eterno que as faz desaparecer Esta é uma voz com rosto de idosa, meio andrógina, de cabelo curto, óculos, ar adoentado com minúsculos olhos escuros Consigo ver o que tem vestido, um casaco de tom acastanhado, calças mais escuras que o casaco, vincadas, sapatos masculinos com pequeno salto e um lenço largado à volta do pescoço de cor beije Mais um avião enfurecido desce farto da viagem, ansioso por aterrar Nesta zona da avenida as esplanadas enchem-se de idosos que engolem cafés, lêem jornais e olham vazios para um ponto distante





24 de Março 2012



Escrever qualquer coisa todos os dias


Escrever qualquer coisa todos os dias A cidade continua a engolir os habitantes Como formigas, entram nas entranhas da terra pelas estações do metropolitano, entram nas carruagens apinhadas, aguardam o destino, aguardam sentados, aguardam de pé, apertados, ensanduichados uns contra os outros, olhares distantes, ausentes, o mendigo mendiga, a criança adormece ao colo da mãe, o ruído do gigante vermelho que transporta as formigas nos túneis, que os envelhece, que não tem coração nem intestinos, nem entranhas, só corpo e função e velocidade A cidade vive de quem nela mora, de quem a visita, de quem a procura, de quem não a suporta, de quem a deseja mais do que a vida, de quem a desconhece mesmo que nas avenidas e praças se espreguice há tantos anos que já lhes perdeu a conta, e são tantas as cidades dentro da cidade






25 de Março 2012



A cidade doente


A cidade doente, de habitantes doentes vencidos pela rotina, pela ilusão de bem-estar, pelas oportunidades de sucesso e pelo estilo de vida que a cidade lhes vai acenando A cidade que já não deslumbra Desespero como os automobilistas desesperam no trânsito caótico e eu desespero porque não desistem Deviam saltar das máquinas que os consomem, abandoná-las, seguir novos caminhos, outras vontades e destinos Desespero pelas horas e dias inúteis em que se consomem estas vidas numa alienada realidade que corrói a esperança e desesperam Envelheci A Rute, o Arnaldo e o Carlos Alberto envelheceram e a cidade sempre presente, animal feroz que prende os movimentos, que agrilhoa os que tentam avançar mas que, como eu, lhe escutam as vozes





26 de Março 2012



Vingo-me na cidade


Vingo-me na cidade opressora com palavras Desumanização de betão e asfalto, de ruído e poluição, do anonimato que recheia a urbe onde não há silêncios A cidade formigueiro, ávida, cruel, indisciplinada, escura e cinzenta onde até o céu se deixa contaminar e altera o tamanho dos sonhos Sigo na avenida pelo passeio cheio de quem anda perdido, despido, sem planos e de rostos fechados A cidade atrofia e as quedas são em maior número que os voos Os prédios crescem, nascem, estão cada vez mais mortos, sujos velhos e gastos Orientam a cidade como um polvo colossal que se expande e se dilata totalmente desorganizado, descoordenado, desorientado, que se expande como um colossal bloco demente, uma entidade viva deslizante que aniquila toda a natureza envolvente Não se vive apenas se sobrevive Descarrego a fúria na cidade porque ela penaliza e não simpatiza com quem a habita A cidade não aceita o erro, descarna a essência de quem se move nos seus passeios, nas ruas e vielas, nas pracetas, largos e nas avenidas Se escrevesse ficava vazio, cansava-me, penalizava-me e assim é bem melhor pois avanço com o ruído das vozes e a companhia dos seus rostos enervantes Quem me fala é uma mulher com cerca de quarenta e seis anos de idade, pele manchada e testa enrugada, instável, neurótica com um olhar fatigado de cabelo desalinhado e que veste roupa que já não pertence a estes dias





27 de Março 2012



Os dias e as noites


Os dias e as noites descrevem ruídos que sobem de tom e que descrevem conversas com nuvens negras e dores que descrevem indecisões e inícios atribulados e que vontade tenho de acabar com todos os edifícios que a cidade viu nascer todas as pontes todos os lugares acabar com tudo de uma vez por todas Acabar com a cidade cansada com todos os castelos e palácios e silêncios e muralhas A cidade cansa e as palavras continuam a aparecer e eu vejo O rosto de quem me fala com esta voz agressiva tem lábios finos e olhos de quem suspeita Uma voz que ecoa e ressoa e enerva Regressam as palavras do Arsénio a insistir a remorder a avisar Vai aviar o medicamento pai deixa de ser casmurro e vai aviar o medicamento A farmácia brilha como uma chama incandescente que saltar do seu interior como um relâmpago e destrói tudo em redor Acabou o passeio e nasceu o asfalto Até ao lado de lá da avenida estende-se a passadeira a desenhar um caminho Entre as duas vias o parque estende-se longitudinalmente acompanhando a avenida Páro junto ao pequeno lago que faz parte deste rectângulo de verde Vou desligar o botão que fará desaparecer a cidade que a fará desaparecer para todo o sempre como se nunca tivesse existido Manifesto a minha preocupação por estes pensamentos Esta voz nervosa tem rosto de senhora com sobrancelhas arranjadas rosto fechado olhar inquieto Uma voz que soa sofrida com a cidade As nuvens tapam o sol mas o calor mantém-se Os automóveis continuam a apinhar as ruas e as avenidas sem avançar num cansaço permanente que gasta as vidas no tráfego eterno Tráfego diário caótico desesperante Quero ver o mar e neste pequeno lago só vejo a água esverdeada com pequenos toques rubros aqui e acolá Salvem estes peixes Tirem-nos daqui e tirem-nos a todos da cidade Tirem toda a gente da cidade e tirem de uma vez por todas a cidade daqui Tirem-me este cenário da frente e tirem-me as vozes de dentro de mim As pessoas seguem cinzentas e automáticas pelo parque Avançam na avenida pelos passeios e acessos a viadutos e a pequenos túneis com escadas por onde descem e sobem mas não avançam seguras Escuto e não queria escutar Estou quase a chegar onde o sinal vermelho manda parar e onde mais nada se move Os peões atravessam a avenida passando por cima dos automóveis que pararam e tapam a passadeira Saltam por cima das viaturas que preenchem a cidade de uma ponta à outra Saltam os condutores e passageiros de dentro das viaturas e começam a discutir uns com os outros Regressam ao banco dos seus automóveis iguais pois ninguém muda Somos o que somos e a cidade acaba por aniquilar o que de bom ainda existia em cada um de nós É um tormento Avançamos pela cidade num passo cada vez mais lento e demorado Mesmo assim somos mais rápidos que o trânsito caótico apático e claustrofóbico É uma loucura São agora mais de vinte os rostos destas vozes Uma é melodiosa outra estridente Uma enervante outra irritante Uma tem rosto de voz delicada e destaca-se das demais Mas que interesse poderá tudo isto ter para alguém Que interesse Nenhum absolutamente nenhum Pode não ser o real pode ser apenas uma mera ideia mas eu ficaria mais aliviado se nenhuma destas vozes me enervasse e se alguma delas fosse capaz de matar esta batalha de linguagens que nasceu dentro de mim Acabem com isso Caluda Raios vos partam Escrever isto para quê para ordenar o que não se ordena o que não tem ordem Escrever isto para tornar límpido o que mata amputa e destrói Como esta entidade viva chamada cidade que mata amputa e destrói Vou sair do parque vou continuar Na avenida nada mudou Tudo está parado imóvel ruidoso Passo para o lado de lá desta imobilidade e deste lado do passeio olho para trás para aquilo que percorri Tudo parado Milhares de viaturas de onde saem milhares de pessoas que agora olham por cima dos tectos tentando entender a razão para esta inércia Vozes estalam cada vez mais violentas no centro da cidade Avanço na direcção do teatro mecanicamente Não sei porque me preocupo com a cidade É uma vontade que me morde e eu obedeço-lhe Com dificuldade vou calando este ruído intenso que me massacra Esta voz tem rosto de mulher jovem e segura que desenvolve e descreve o seu raciocínio num tom nasalado As maças do rosto são marcadas e o cabelo cuidado As suas palavras irritam mais do que magoam Ao longe vejo uma farmácia vejo duas vejo três e não cedo Não ainda Sai de casa para me abandonar no ambiente da cidade até não poder mais A cidade que já não tem nada para me oferecer a não ser a sua própria existência É isso que me permite existir e que permite que o desabafo exista e os silêncios não Está mais perto a visita ao farmacêutico e aqui estão os jovens Felizmente que alguns parecem não fazer parte deste universo Abandonaram as salas de aula abandonaram as paredes abandonaram os corredores e são verdes como a relva onde repousam Quero ser assim também ter a idade que é a deles que já foi a minha e que a cidade engoliu Esta é a voz de um homem africano de olhos negros e pequenos com sobrancelhas carregadas barba mal aparada cabelo curto e testa vincada com fortes rugas de expressão É arrogante e fala como se entendesse tudo sobre todos os assuntos e sobre todas as matérias Não erra tudo sabe e tudo compreende Farto estou verdadeiramente farto destas vozes e destes rostos que me falam Vou ser um pouco desta relva para poder deixar de dizer mal da cidade mas não consigo Estou zangado com ela e quero continuar a desabafar desta maneira sobre a cidade Repetidamente desabafar Não gosto da cidade Ela aproveita-se dos habitantes para crescer e engordar para submeter e subjugar Rostos sobretudo rostos cansados vivem na cidade que cansa Cansou os donos das vozes que me odeiam e que fazem ferver esta memória Vou comprar um caderno e uma caneta Prefiro isso aos medicamentos Não prescindo da minha saúde e sei que esta loucura vive agora em mim como a cidade Quero dar cabo da cidade e da minha loucura Vou destruir-lhe as entranhas e convoco para o combate estes jovens enamorados que ainda escutam o coração Que merda E agora asneiras porque são palavras como qualquer outra Merda e mais merda para a cidade que destrói Merda para a cidade das vozes das doenças e dos amigos que envelhecem e se deixam derrotar sem combater





28 de Março 2012



Preciso de respirar


Preciso de respirar A cidade não deixa Vou partir Depois deste dia, vou-me embora daqui Se nada me prende e tudo me perturba, se as vozes não me largam e não se calam, vou partir Tudo depois deste descanso está igual, imóvel, caótico, quente, metalizado, claustrofóbico, sujo, poluído, velho, gasto, carcomido e cinzento A cidade nefasta Vingo-me nela com esta oferenda de palavras A cidade não é solidária, a cidade é coisa, é coisa gigante e como coisa gigante que é desumaniza quem a percorre e quem dela se tenta alimentar Virar a cidade ao contrário de pernas para o ar não vai resolver o problema Os seus interiores vão esventrar ainda mais as entranhas da terra As mais altas construções da cidade vão ferir de morte o que resta do ambiente Esgotos a céu aberto, canais subterrâneos, túneis e as catacumbas obscuras das mais antigas lembranças da cidade ficarão a céu aberto, serão a nova equação caótica por onde teremos de caminhar, de viver e de sobreviver Com esta reviravolta a cidade não se destruirá mas destruirá quem nela habita A voz que me fala tem rosto de menina jovem com olhos grandes, negros, pele clara e cabelo roxo escuro cortado impecavelmente numa franja perfeita que cobre metade da testa São muitas as sardas que lhe invadiram as bochechas e o rosto fresco, redondo e sorridente Este foi o rosto da voz que me disse para virar a cidade ao contrário e para a colocar de pernas para o ar Estou cansado mas ficar nesta fila na paragem de autocarro a morrer devagarinho, isso é que eu não fico Antes virar a cidade ao contrário e continuar a caminhar Jogar com os pensamentos, deve ser isso que o medicamento é capaz de fazer Acalmar as ondas cerebrais que, umas atrás das outras, me cansam e acompanham A cidade ri de mim ou pelo menos assim parece É o que me dizem as pessoas apressadas que avançam automáticas e desgovernadas pelo passeio Estou febril, sinto-me febril com a cidade, mas ao contrário dela, que nunca se cansa, eu necessito repousar









29 de Março 2012



Tudo parou


Tudo parou Avanço por entre postes e candeeiros de rua Avanço pelo meio das pessoas perdidas e paradas Tudo parou menos a cidade porque eu não parei A cidade serve-me os seus habitantes como estátuas neste gigantesco museu a céu aberto O planeta gira pois o sol dá conta que a manhã termina As nuvens tapam-no e destapam-no por sobre os prédios O ruído da cidade parou como as pessoas, parou o ruído e as viaturas e agora a cidade é o maior museu que já visitei Os animais citadinos estão petrificados como nos anúncios e documentários em que a câmara fornece o único movimento possível Aqui não se trata de um anúncio ou filme ou documentário A cidade, com um toque similar ao de Midas transformou em estátuas todos os que nela habitam, excepto eu Liguei à Rute o telefone toca e não atende Liguei ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e o mesmo aconteceu Estou receoso Será que se ligar ao meu filho Arsénio ele me responde ou também ele estará petrificado E as crianças, e a Laura e a minha irmã Isabel, como estarão Será que sofrem todos da mesma recente maleita da cidade Assim acontece quase sempre As vozes chegam devagar, aconchegantes, falam de coisas aparentemente banais e inofensivas e falam também de outras menos banais e inofensivas e depois, após as primeiras horas da manhã, eis que me dominam o pensamento de tal forma que me transformam completamente o dia fazendo estalar e aumentar esta minha aparente loucura Hoje resolveram começar por me dizer para caminhar sem rumo pelas avenidas e observar o movimento descompassado e mecanizado dos seus viajantes Observei o caos em que a vida da cidade se gosta de espreguiçar apenas para fazer de conta que ainda me preocupo em tentar encontrar algum sentido para esta minha forma de loucura Vejo mas não acredito no que vejo Toco nas pessoas e elas não me sentem, não se mexem, não pestanejam Respiram, os peitos dão sinal Os corações dos habitantes não pararam de bater Muitos foram os dias e principalmente as noites em que tinha medo de adormecer Não sabia como o coração e os pulmões podiam continuar acordados enquanto nós dormimos, enquanto descansamos Tive pesadelos terríveis em jovem pois acreditava que o coração podia adormecer se eu não lhe desse ordens para bater e eu morreria a dormir Porque sabemos como acordar Porque acordamos Quem nos fornece essa ordem secreta para terminar o sono e dar início à aventura de mais um dia Quem ordena aos pulmões que mantenham o seu ritmo para conseguirmos respirar, para conseguirmos viver Porque não dormem os pulmões, o coração e tantos outros órgãos de quem dependemos Porque não descansa o cérebro, como consegue ele ir mantendo os sistemas a funcionar até ao fim As insónias que tive ao pensar demasiado nestas questões Fico mais descansado por saber que os milhões de habitantes estão apenas congelados neste instante e pertencem a um qualquer sono que as quer manter assim Maldita cidade que me transformou neste ser doente com imagens e vozes e rostos a invadirem-me todos os instantes da vida As imagens impossíveis que este rosto me descreve só podem acontecer porque vivem na mente de alguém a quem a loucura invadiu E se todos pararam, porque me movimento eu




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