Cidade caótica
que engole (os autocarros) e esvazia as almas.
que consome e maltrata
Cidade doente
Animal feroz que prende os movimentos
que agrilhoa quem quer avançar
Cidade opressora
Desumanização de cimento e asfalto
Polvo colossal, desorganizado, descoordenado, desorientado
Entidade viva deslizante
que aniquila a natureza envolvente
que não simpatiza com quem a habita
que não é solidária
que é coisa
coisa gigante
A cidade da crise A cidade de todas as crises
cíclicas imensas universais gigantescas Em cada esquina cresce a serpente
humana dos que procuram alimento para sobreviver A cidade que não se importa
que cresce violenta grotesca terrível inabalável na sua petrificada violência
de ferro cimento vidro e betão Os habitantes da minha cidade transformaram-se
de novo para voltarem a ser os habitantes da cidade do poeta Esfomeados
ordenados desorientados organizados em grupos descansam por instantes do seu
enorme desespero A cidade está parada e estrangula toda a fé A cidade é
implacável e irredutível nesta sua escuridão O poder da cidade encontra-se nos
desejos que ela fabrica Quem a pretende governar quem a pensa poder governar é
engolido num frenesi imenso que faz delirar a cidade A máquina corrupta teatral
mediática que se reconstrói que se reinventa que se impõe que é de todos pois
todos assim a fizeram crescer A cidade diz-me tudo o que escuto ao caminhar A
cidade das promessas conta desta forma a trágica história Hospitais estradas
escolas pontes ferrovias túneis viadutos museus bibliotecas avenidas estações
aeroportos parques aquedutos portos prédios estradas e autoestradas ligações
ferroviárias o paraíso cinzento-escuro do asfalto e dos automóveis amigos brilhantes
velozes e reluzentes A cidade engorda de prazer ao som vibrante do objeto
poluente que lhe alimenta as entranhas Viva o automóvel e cresça a cidade veloz
à velocidade estonteante do objeto rodante A cidade das estradas e autoestradas
e avenidas ruas largos cruzamentos rotundas poesia urbana poesia mecânica
poesia metálica complexa vascular arterial Cimento a poesia do ferro do aço e
do cimento A cidade visionária transformadora imperial e futurista A cidade dos
que vivem na rua porque a cidade é o lar dos que vivem na rua dos que vivem no
bairro dos que vivem agora e dos que ontem viveram na rua A cidade será sempre
o seu lar A cidade dos civis e dos militares A cidade dos que agradecem terem
regressado à cidade Viajo anónimo no meio de milhões no meio dos sonhos de
milhões A cidade será sempre a cidade de todas as esperanças e não apenas a
cidade de uma só esperança A cidade engole os habitantes e tira mais depressa
do que oferece A cidade engole os habitantes que foram engolidos pelos objetos
rolantes Os habitantes já não são os donos das ruas da cidade Os automóveis
tomaram conta das ruas matando-as tomaram conta da grande avenida da
autoestrada do viaduto da gigantesca galeria e fizeram renascer a cidade como
um esgoto de escuras entranhas Esta é a nova cidade do vidro da transparência
do andaime da forma paralelepipédica da forma prismática vertical imensa Os
novos pobres chegam à cidade e tomam conta dos seus pedaços mais sujos mais
negros mais distantes e degradantes A cidade é uma tragédia e tudo isto me é
comunicado por uma voz com rosto de homem idoso perdido de cabelos brancos
marcado por muitas rugas num rosto queimado barba longa grisalha olhos azuis e profundas
olheiras A cidade que já não é industrial que já não é esperançosa que já não é
o que foi mas que deseja ser tudo aquilo que ainda pode ser O homem pertence à
cidade e alimenta o génio e a grandeza da cidade E o homem é louco e a cidade é
o homem louco que a esventra destrói constrói reconstrói Recria tudo o que na
cidade ensandece recria a desgraça do subúrbio recria redesenha reconstrói
reinventa faz crescer faz desaparecer destrói para segregar para desumanizar
mais uma vez outra vez uma décima vez uma centésima vez uma milésima vez uma
centésima milionésima vez A cidade dos cada vez mais ricos e poderosos que
afasta os desfavorecidos para guetos e subúrbios cada vez mais distantes A
cidade afasta os habitantes a quem destrói todas as raízes para se
descaracterizar para rejuvenescer orgânica desagregada descaracterizada
desumana e formatada Renasce não-cidade renasce coisa não-humana A cidade
urbana do desastre A cidade automóvel caótica horrífica poluída suburbana
catastrófica cinzenta escura quente inexpressiva corroída louca e que
enlouquece Esta é a cidade a quem o coração foi arrancado vezes e vezes e vezes
sem conta A estrada está entranhada no centro do coração da cidade A estrada
corta esventra e destrói o que resta do coração da cidade Toda a cidade é do
homem ditador que a deseja e quer deixar riscado para sempre o coração da cidade
Viva o alcatrão antissocial viva o cimento o imenso o anti-humano viva tudo o
que é catastrófico para engrandecer a nova alma da cidade porque a cidade deve
ser coisa sem alma Viva o império do alcatrão do cimento do petróleo da
mobilidade que agrilhoa e divide a cidade que a esmigalha que a destroça e que
vira a cidade contra aqueles a quem a cidade deveria servir Constrói constrói
destrói reconstrói destrói constrói reconstrói destrói constrói destrói
reconstrói destrói destrói desumaniza intimida desagrega destrói destrói
constrói reconstrói Viva o império da cidade Viva o império do homem-cinzento
do homem autoestrada do homem que queria ser cidade que queria ser esgoto
porque o homem destrói destrói reconstrói devasta constrói definha definha e a
cidade definha Cresce mas morre Cresce mas morre cada dia mais um pedaço Cresce
mas fica todos os dias cada vez mais minúscula cada vez mais parada mais
cinzenta mais morta mais inacabada mais museu A cidade dos ciclos e dos
pesadelos e dos desesperos dos castanhos e cinzentos não mais dos verdes e dos
azuis Para que serve a cidade para que serve este pesadelo gigantesco inerte e
esventrado desumano que agora volta a petrificar todos os que nela habitam O
homem mata a cidade e a cidade retribui O homem acredita que o que é moderno é
melhor e a cidade retribui A idade de tudo o que era sagrado na cidade acabou e
a cidade retribuirá Onde se encontra o que há de sagrado no coração da cidade
onde se encontra o sagrado na cidade O que desejamos da cidade Todos a vandalizam
Todos a matam e a cidade matará o homem que mata a cidade Esta é a voz com
rosto de velho cansado ambicioso ganancioso cruel de olhos castanhos fundos de
olhar desumano que deseja construir o coração no cidade A cidade está estripada
e deve ser destruída para que se possa vingar contra quem a desejou assim Eis a
cidade desumana que não é velha nem é nova Esta é a cidade do ser-humano Esta é
a cidade que caminha e faz caminhar Os habitantes da minha cidade começam a
acordar Os habitantes da minha cidade não percebem esta momentânea filosofia de
paragem Eu não entendo nada do que se passa O melhor mesmo é continuar a
caminhar como se nada tivesse acontecido O poder da cidade está no poder das
pessoas e não no poder da pessoa poderosa que julga pensar pela cidade A cidade
existe e ainda pode existir se for bem pensada por quem nela habita O espaço
urbano da cidade pensa moderno pensa matar o passado pensa matar
definitivamente o coração da cidade e a cidade morde A cidade que não deseja
escurecer morde e ataca Quer manter-se na essência daquilo que ainda é A cidade
está viva tão viva e tão imensa tão rápida A cidade já se esqueceu de quem
verdadeiramente é O subúrbio é a cidade o gueto é a cidade a miséria e a
degradação são cidade as sombras mais do que a luz são cidade a corrupção e a
injustiça são cidade o desemprego e a poluição são cidade O povo em constante
conflito é a cidade Esta voz tem rosto de mulher jovem de nariz escultórico
cabelo ruivo ondulado com olhos castanhos profundos e pele clara e bem tratada
Esta voz é profunda intensa rica e melódica A cidade não para A cidade é eterna
As escolas dos bairros degradados explodem e a cidade explode num caos urbano
sem precedentes A miséria explode os prédios explodem e a cidade implode A
cidade vale mais destruída do que inteira A cidade urbana e suburbana é uma
doença moderna sem fim uma doença louca cíclica e caótica Onde estão as
crianças da cidade Onde estão todas as crianças e jovens da cidade Onde estão
os idosos os doentes e os loucos da cidade Onde estão todos Seguem-me
encarcerados nas viaturas imobilizadas estão de olhos colados aos vidros Olhos
tristes destroçados e cansados Onde para a cidade verde e azul A cidade foi
pensada para dar lucro para promover o lucro para nunca parar de crescer de
desumanizar e de arruinar Sinto esta doença da cidade que me afeta e corrói A
cidade irá explodir irá morrer ou irá sobreviver A cidade é tudo aquilo que não
devia ser mas também é aquilo que ainda pode ser A cidade nasceu cresceu viveu
mas não sabe como sobreviver A cidade extraordinária é contraditória e sofre A
cidade encontra-se na cabeça do todos os habitantes do globo Eu ainda não fui
habitante da cidade mas sou habitante da cidade porque sou habitante do mundo
As cidades das torres que vibram e clamam poder e virilidade Os habitantes
movimentam-se cavalgam nos seus cavalos de metal como em todos os outros dias
Viva a cidade moderna futurista poderosa global vaidosa ambiciosa engenhosa
empreendedora humana Viva a cidade humana construída por seres humanos
audaciosos inteligentes engenhosos experientes corajosos e capazes como nenhum
outro ser humano Viva a cidade dos prodigiosamente capazes Viva a cidade que
alberga e que aparentemente protege os que nela habitam Viva a cidade que
depois de ferida debilitada frustrada atacada e descrente cresce com formas
impossíveis Viva a cidade imensa global Viva a cidade de todas as liberdades
Viva a cidade paradoxal
O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada
tivesse acontecido
A cidade é antiga A história da cidade tem séculos
cada um com milhares de histórias que a transformaram Nada na cidade é simples
ou harmonioso Tudo se transformou para que a cidade crescesse desmesurada
crescesse do mar e do rio que assim a moldaram gigantesca e cosmopolita A
cidade olhou para a frente e nunca mais parou de crescer Recebeu milhares
recebeu milhões ao longo destes séculos Transformou-se foi parcialmente destruída
cresceu industrial e comercialmente cresceu com os seus sistemas de navegação
com os sistemas rodoviários ferroviários, com ideias tensões surpresas
dinamismo rotina utopia revoluções liberdade e luz A imprensa da cidade é
enérgica sempre foi mais enérgica do que os seus silêncios principalmente na
primeira metade do século dezanove A cidade cresceu com os ardinas que vendiam
jornais carregados com histórias de sexo crime assassinatos e todos os demais
vícios A imprensa vibrava com as histórias mais violentas da cidade e a cidade
vibrava Poligamias incêndios acidentes e incidentes e a avenida central sempre
vigilante como espinha dorsal da imensa urbe A cidade cresce desordenada
caótica miserável grotesca porque as pessoas que a habitavam assim a fizeram
crescer Gigantescos contrastes entre ricos e pobres entre quem é culto e quem
não possuí formação entre etnias entre todas as caóticas transmutações que o
tempo lhe acicatou O coração da cidade cresceu nesta variedade e diversidade e
assim se moldou A cidade grotesca que ama o grotesco que ainda hoje ama tudo
aquilo que é grotesco Os escritores da cidade faziam crescer a sua reputação
monstruosa nos primeiros jornais obedecendo aos gostos da época obedecendo ao
prazer de publicitar as diferenças as dores as fantasias que vendiam bem melhor
do que tudo aquilo que é normal e fútil e desinteressante E não paravam os
novos habitantes de chegar à cidade que deles se passava a alimentar para lhes
poder dar sustento esperança e alguma dignidade Todas estas imagens me são
transmitidas por uma voz de mulher africana com rosto redondo olhos negros e
cabelo curto A maior das misérias estava para chegar A cidade recebia caixões
abertos em náuticos paquetes que eram o produto acabado da desumana travessia
que os derrotava O sonho e a esperança eram o único alimento a cobrir-lhes o
pensamento
A miséria é dona da cidade e cresce por toda a parte fazendo crescer
a cidade e todos os seus lugares O coração da cidade nasceu racista e cresceu
racista moldando-lhe parte dos genes que a caracterizam As várias linguagens da
cidade desagregaram-na descaracterizaram-na e dividiram-na Crime sujidade
poluição medo e miséria a par de uma falta de esperança do tamanho do mundo
caracterizaram os sonhos da cidade no início da primeira metade do século
dezanove Avanço por entre habitantes congelados que não são os da minha cidade
Avanço pelos habitantes congelados dessa cidade antiga que me surge como um
pesadelo um violento inferno a céu aberto com milhares de habitantes perdidos e
a ordem violenta e sanguinária dos seus gangues que fazem da cidade um
permanente cenário de guerrilha urbana A cidade museu transformou os habitantes
mas não me transformou Avanço na tentativa de encontrar explicação para tudo
isto que me acontece pois nada faz sentido Esta é a voz de um homem calvo com
barba curta e cuidada de olhos castanho mel Quem sou e o que significo para a
cidade Falo sobre a cidade como se a tivesse escrito apenas ontem e a revolução
citadina está para breve
O poeta é o reunificador O poeta é o único capaz de
sentir a cidade O poeta é o único capaz de dar a conhecer o coração da cidade
Esta é a voz com rosto de Walt Whitman que viajou do passado e me fala da sua
cidade calcorreando-a e inventariando-a como mais ninguém o pode fazer Fala-me
de todas as pessoas e dos sonhos que lhes foram apagados O poeta da cidade
conhece a sua cidade e viu luz no alienado e caótico caldo citadino A minha
cidade não é a de Whitman mas todas as cidades são as de Whitman Foi ele que
transformou os habitantes petrificados da minha cidade nos habitantes
petrificados da sua Nova Iorque A voz do poeta é única como a cultura do desejo
é única como toda a fantasia e curiosidade e a selvagem e pura busca da verdade
são únicas A fantasia desse anónimo amante da cidade é a de que através do seu
amor se pode libertar A cidade sexual a cidade do prazer do prazer libertador
em contraponto com o poder castrador do cimento do tijolo da argamassa do
edifício da estrada da avenida Quem vê assim amantes no mais improvável dos
elementos da cidade é o maior dos amantes da cidade Quem ama a cidade miserável
deprimente e injusta é um amante da esperança e do coração dos homens Esta é a
cidade dos desempregados dos esfomeados dos desfavorecidos dos injustiçados dos
doentes Esta é a cidade que cresce cinzenta e desgovernada A população vive
empacotada nos mais repugnantes e claustrofóbicos espaços e sobrevive na pior
das condições A população não respira só respira o ar asfixiante de todas as
maleitas da cidade Esta é a cidade que cresce anónima desigual e sem tempo para
desperdiçar A cidade tem de renascer tem de se reinventar tem de deixar de
sangrar internamente para que os seus habitantes deixem de sangrar internamente
E a cidade reinventa-se em quadros de verde e de esperança através do maior de
todos os parques citadinos A cidade bebe essa esperança e tenta calar os ruídos
nesta sua reinvenção Mas este parque não é sinal de libertação o parque foi
pensado para quem se sabe comportar A cidade foi engolida pela história e a
história da cidade transformou-se por todos aqueles que a reinventaram A cidade
não para a cidade nunca para como a noite termina para o dia nascer As pessoas
petrificadas da minha cidade regressaram Walt Whitman diz-me que a linguagem
dos antigos habitantes da cidade é a mesma dos de agora A cidade escraviza e
vive desse próspero raciocínio de que se alimenta A cidade enlouqueceu O campo
que alimenta a cidade enlouqueceu o mundo enlouqueceu e o poeta serviu a cidade
e o campo nessa loucura A loucura fez crescer a cidade louca que louca cresceu
e enegreceu O mundo a cidade e o campo enlouqueceram e os loucos queimam-na destroem-na
Edifícios pilhados esperanças destroçadas vidas desfeitas a vingarem-se da
cidade e das suas entranhas As multidões atacam os empresários atacam os donos
da imprensa atacam os banqueiros e os corretores atacam todos os que possuem
cores e visões diferentes da multidão Os que atacam estão desesperados e com
ódio no olhar atacam o coração da cidade que agora está queimada negra e
anárquica O réptil venenoso que habita na cabeça de cada habitante da cidade
alimentou-se do veneno da cidade O vermelho toma conta do coração negro da
cidade A cidade está em guerra a cidade é o próprio inferno que aqui se
edificou Pais e filhos e primos e irmãos lutam uns contra outros nas praças nas
avenidas nas ruas e nas esquinas esventradas da cidade do poeta que não sabe o
que dizer O poeta não consegue explicar a cidade doente que não é justa porque
nunca o foi e nunca o será O verdadeiro poder da cidade está na sua capacidade
de sobrevivência Como sobrevive a cidade a este inferno que arde no centro do
seu coração A cidade pobre e rica é vergonhosa ou possuiu carácter A cidade
pobre e rica é violenta ou apaziguadora A cidade não fala pois não precisa
Todos os habitantes falam pela cidade O poeta duvida da cidade mais uma vez São
negras negras negras as nuvens que pintam como serpentes o céu da cidade A
cidade sem futuro tem passado e este presente Quem são os que mandam na cidade
nesta cidade de ricos e de pobres nesta cidade das luzes e das sombras cidade
do sol e da escuridão Esta é a cidade dos desesperos de todas as misérias da
mais profunda e gritante de todas as misérias A cidade renascerá como nunca A
cidade reinventa-se máquina reinventa-se cidade futurista e fumegante A cidade
reinventa-se gananciosa diabólica corrupta cruel desgovernada O monstro sem
ética nem moral renasce cinzento poderoso e explosivo A cidade cresce imensa
para lá das margens dos rios cresce para norte para este para sul e para oeste
Para todo o lado a cidade cresce e cresce para lugares onde ainda não era a
cidade Esta cidade não é amada e não ama O antigo habitante da cidade não a
conhece nem a cidade o reconhece
A cidade cresceu para lá do rio e foi ligada à
sua outra parte em crescimento A cidade da ponte que nasce gigantesca e maior
do que todas as outras pontes que após esta nascerão A ponte da cidade nasceu
corrupta como as relações entre os poderosos da cidade A cidade corrupta
fraudulenta desesperada vilipendiada pobre sempre pobre doente e escura A
cidade fraqueja é suja tão suja tão desgraçadamente suja que não sei como
consigo caminhar A ponte enche o céu por cima de quem habita a cidade A ponte
pertence à cidade e a cidade à ponte A cidade cosmopolita dança finalmente no
parque verde fora dos esgotos lamacentos dos guetos escuros e mal cheirosos A
cidade dança com medo vive no medo vive nervosa vive sombria e mata a esperança
Esta é a voz de um homem idoso com cabelo branco curto bigode aristocrático
olhos vivos inteligentes nariz imenso redondo e vermelho Como os escuto Como
ouço não sossego Escuto sempre e sempre e sempre e já não consigo imaginar esta
cidade sem vozes As vozes falam-me tanto sobre a cidade que só podem pertencer
à cidade e algumas dessas vozes são só minhas A história da cidade passa a ser
a história da ponte e do rio que dividia as duas partes da cidade Esse é um rio
que já não divide A cidade embelezou-se pois a ponte que une a cidade é bela e
forte e cresceu vigorosa através do trabalho de quem a montou A cidade e a
ponte são uma só esperança Ricos e poderosos fazem crescer este paraíso urbano
e fazem crescer as diferenças entre os que têm e os que não têm Todos parados
Os habitantes da cidade permanecem petrificados Acredito que isto é uma manobra
programada pela cidade para me enlouquecer definitivamente Permaneço
minimamente saudável pois escuto as palavras que os meus rostos me cantam Esta
voz tem rosto de criança com cabelos encaracolados revoltos e sujos com olhos
da cor da esperança O otimismo do poeta não contagiou a cidade A cidade não se
permite a otimismos O poeta outro poeta quase deixou que a cidade o derrotasse
E o flash das máquinas mostrou toda a escuridão A cidade escondida dos
fantasmas escondidos dos passageiros do inferno A cidade dos miseráveis da mais
horrível e miserável ruína da mais horrível e miserável pobreza A cidade que é
dos homens e não é dos homens a cidade dos meninos abandonados a cidade dos que
sendo habitantes da cidade são habitantes dos vários infernos onde apodrece a
cidade A cidade das doenças amigas pois matam e trazem finalmente o paraíso aos
que falecem A cidade doente a cidade que despoleta as doenças com infinita
paciência enchendo caixões enchendo cemitérios E o livro do poeta ajuda a
cidade que não ajudou o poeta porque a cidade é tudo menos justa A cidade é
forma é arco é edifício é estátua é sombra é sombra projetada em outras sombras
segundo as palavras do primeiro poeta que faleceu Em tão pouco tempo o poeta
viu a cidade florescer com esperança com os olhos que só um poeta pode ter A
cidade ecológica cultural e ambiciosa que se reinventa Glória para a cidade e
glória ao poder infinito dos que nela mandam A cidade esperança nasce com o fim
de uma era e o início de outra A cidade cresce gigante muito para além da
imaginação dos que a habitam A cidade física cresce como cresce a onda dos que
a desejam alcançar Essa onda é a primeira de muitas marés que nunca terminarão
A cidade misteriosa a cidade densa a cidade dos que a ela chegam A cidade que
nunca é pois está em permanente transformação O que é a cidade e de quem é a
cidade Os poetas compreendem a mudança da cidade grande tão grande Tantas foram
as lágrimas vertidas por quem chegou à cidade por quem chegou à cidade e
sobreviveu A cidade é cidade criminosa cidade doente A cidade louca desesperada
traumatizada A cidade dos esquecidos e dos que jamais regressarão Todos os
países pertencem à cidade que se transforma que cresce que os recebe como se
fosse o céu A cidade recebe-os como se não existisse na terra mas sim no céu A
cidade das estruturas verticais que se erguem cada vez mais altas Erguem-se
cada vez mais imponentes Erguem-se e fazem da cidade a maior de todas as
estruturas A cidade gigantesca colossal vasta tão vasta que as energias se
esgotam para tentar encontrar palavras adequadas que a descrevam A cidade
templo esta cidade templo continua a perseguir-me como uma sombra louca e
fantasmagórica Nada se mexe nada se move nada se movimenta ou disso dá sinal A
cidade metrópole inaudita que não só se transforma como se deixa transformar A
cidade dos milhões que a invadiram e que se tornaram tão frenéticos como a
cidade Os habitantes são regulados pelos ritmos frenéticos da cidade moderna e
cosmopolita que os organiza e automatiza e que assusta e que afinal não é o céu
que aguardavam As ruas da cidade são bazares são mercados colossais são
virtudes aceleradas sem descanso frenéticas a sugar os sonhos dos novos
habitantes A cidade disseca as esperanças e as energias e coloca todos contra
todos velhos contra velhos e acima de tudo velhos contra novos corações contra
corações imagens e rostos de ontem contra imagens e rostos de agora As ruas da
cidade estão furiosas apinhadas e confusas Aqui se nasce se vive se sobrevive A
cidade caprichosa que engole os habitantes transporta-os e castiga-os Os que
nela vivem conhecem finalmente a verdadeira dimensão desta entidade A cidade
das estações por onde tantos passam por onde são destilados onde se iniciam e
terminam as viagens de todos os destinos De nada interessa tanta luz tanta
ponte tantos caminhos tão rápidas ligações O problema da cidade vive com a
cidade e ela galvaniza-se nestes ciclos desmesurados de contrastes A cidade
sempre será uma cidade de contrastes de corações partidos e afastados A cidade
escraviza a cidade tem escravos que não podem falar nos seus postos de trabalho
que não se podem atrasar que não podem parar de produzir Esta é uma voz com
rosto de mulher de tez pálida penteado esculpido em escultóricas tranças
apanhadas atrás da cabeça numa caprichosa e perfeita banana de cabelo O olhar é
cansado exausto negro esperançoso e inquieto A cidade exausta a cidade que
desespera todos os que nela vivem e trabalham quem nela respira quem nela ainda
acredita A cidade mata de cansaço quem trabalha mata de dor transforma os
sonhos no maior dos pesadelos A cidade é um mar de chamas é um inferno que
nenhum bombeiro consegue debelar A cidade dos que voam para escapar à morte e
que a abraçam A cidade das trevas e das tragédias sem igual A cidade surda
pesada infinita A cidade petrificou todos os que nela habitam sem pestanejar e
mantém-me acordado para que escute as minhas vozes enquanto caminho sem rumo no
meio da quietude e do silêncio Escuto as memórias dos mortos de todos estes
mortos que a cidade fez desaparecer Choro pelas vidas de todos os que a cidade
fez desaparecer Choro pelos escravos da cidade pelos escravos de todas as
cidades choro pelos que padecem nos horrores que crescem nos corações da cidade
A cidade parou de dançar todos pararam de dançar a
coreografia da cidade O peso é tremendo o vazio silencioso sufoca pressiona Não
tenho forças para correr mas é isso que me apetece fazer correr para bem longe
deste museu artificial onde me movimento Só isso me ocupa o espírito nada mais
A cidade inventou esta inércia organizou este pesadelo para meu tormento Avanço
na direção dos prédios que se encontram para lá do parque central da avenida
Sigo até essas torres circulares que ocupam metade da grande rotunda Talvez
consiga encontrar o Arsénio mesmo parado mesmo estátua As árvores na avenida
parecem surpreendidas por não as cumprimentar como é meu costume Hoje a cidade
vinga-se da minha amargura do meu colapso Resolveu empurrar-me definitivamente
para o lado mais escuro do abismo Mas eu quero continuar a conseguir
relacionar-me com os vivos
Quando a cidade escurecer não estarei aqui Porque
será que tudo está petrificado e eu sozinho no meio de toda esta gente no meio
da cidade estátua no meio dos que ficaram dentro das viaturas É uma solidão sem
paralelo e a sensação é insustentável As pessoas anónimas que fazem parte da
vida da cidade assustam nesta inércia forçada O peito ficou obstruído Um forte
aperto no peito impede o ar de circular Grito e não sai nenhum som nenhum sinal
Perdi de vez a ligação com a cidade que também não fala e não se mexe Tentou
acabar com a minha irritação e com a minha mágoa assustando-me Estou sozinho no
meu destes milhões numa solidão claustrofóbica doentia e sufocante Uma solidão
igual à que sofre a cidade Deixou de fazer sentido continuar o passeio Tenho
como companhia esta voz com rosto de menino numa cara suja de olhos brilhantes
vivos inteligentes com um sorriso inocente doce e cativante É ele que me
descreve as avenidas paradas completamente preenchidas por centenas de milhares
de viaturas imobilizadas onde parou tudo o que vive O vento está petrificado como
a brisa e todos os ruídos Só eu permaneço igual na cidade estátua Volto a ligar
à Rute uma última vez volto a ligar ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e reponde-me
o silêncio Devem estar tão quietos como todos os que se encontram aqui Vivos
mas estáticos E será que observam será que escutam este silêncio será que
sentem este estranho odor a quietude a marasmo e a inércia forçada Um silêncio
gigantesco tomou conta da paisagem e enche-me de vontade de gritar Mas que
grande merda esta Quem se lembrou de virar a cidade contra mim Foste tu ó
cidade maldita que não gostaste do que disse de ti É assim que procedes com
quem te critica Vai para o raio que te parta espécie de inferno habitado Tu não
me derrotarás Estou meio louco Já estava meio louco A loucura espreitava de
qualquer forma por detrás de cada esquina por onde eu passava por isso podes ir
para o raio que te parta ò cidade merdosa Cidade megalómana e exacerbada com requintes
de imperatriz Quem serias tu se nós homens não te criássemos Quem serias tu sem
os homens que te reconstroem sem os que fazem de ti tudo aquilo que tu és e que
não és Vingas-te em mim apenas em mim Porquê Continuas muda silenciosa apesar de
gritares de descontentamento através desta fossilização generalizada que acabaste
de produzir Deixa-me em paz cidade funesta deixa-me em paz com a minha solidão Volta
àquilo que é normal e faz com que todos regressem aos movimentos e vivam e se deixem
angustiar nas filas intermináveis e no caos das tuas entranhas Volta àquilo que
é normal e deixa que todos regressem às rotinas diárias cinzentas com que te refrescas
Deixa-os viver ou morrer ou lá o que fazem dia após dia após dia É uma bela porcaria
este sistema que me faz sofrer Oferece de novo movimento a quem o retiraste Volta
a girar o mecanismo volta a dar corda ao sistema para que possas voltar a consumir
a vida de todos num instante Fomos nós homens que te criámos como uma prisão e tu
não aprecias aquilo em que te transformaste Serás ainda pior com o passar dos anos
Ficarás mais caótica mais inútil inerte suja escura e dantesca Serás um gigantesco
e inútil animal anónimo Vai mas é para o raio que te parta
Abri a porta Na avenida o caos habitual Os animais
metálicos tentam chegar aos destinos mas não avançam mais que uma mera dezena
de metros por minuto O calor associa-se ao cheiro urbano do tráfego diário
Preciso do café da manhã, de passar os olhos por um pedaço de notícia, mas para
quê se elas se repetem sempre tão iguais As pessoas nos passeios são um
formigueiro humano que avança como os animais metálicos Em rituais ensaiados,
sobem pela direita, descem pela esquerda numa interiorizada cópia do sistema
rodoviário, derretem-se no asfalto, derretem-se na calçada A ordem de todas as
coisas, a ordem desordenada da lei do mais forte a ordem do distraído que
segue alheio à rotina, a ordem dos animais semeados perdidos na beira dos
passeios, a ordem dos semáforos dos sinais visuais e sonoros das sirenes dos
que querem orientar a ordem dos animais metálicos depositados aleatoriamente
nos passeios entre espaços impossíveis a ordem da ousada condutora apressada
de filhos carregados de filhos empurrados de filhos carregados com quilos de
mochilas às costas sabedoria ocidental a ordem dos funcionários camarários
que limpam que desesperam quem deseja avançar e segue atrás do gigante
triturador a ordem dos relógios a ordem da discussão familiar no banco da
frente a ordem da fome que se mata com a palhinha introduzida no pacote de
leite acastanhado adocicado amigo no banco de trás a ordem dos pássaros
metálicos gigantes que guincham os últimos segredos nos últimos segundos da
viagem ao passar mesmo por cima da avenida Não sei como aqui se dorme se
acorda se descansa A ordem dos mendigos e dos loucos que como mendigos pedem
a quem passa dois ou três segundos de atenção a ordem desordenada dos
esperançosos estudantes com brilho nos rostos que suspiram horas perdidas nas
desalinhadas filas dos transportes A ordem das estações debaixo do solo a
mesma estação que os espera no final da viagem a ordem de tudo aquilo que se
constrói cada dia desde que se acorda desde que o vento bate nas cortinas da
janela mal fechada dos elevadores que não trabalham a ordem gasta das
fachadas dos velhos edifícios da avenida dos cafés que lhe conhecem os vícios
de todos os viciados das árvores hipóteses verde esperança que respira
citadina citadinas como todas estas que se perfilam ao subir a calçada
apinhada A Rute está atrasada como sempre mais uma vez Tem sido assim nestes
últimos dias Já cansa tanto atraso Obedece a outras ordens, os seus lugares já
são outros e não responde às mensagens A Rute preocupa-me pois já não é capaz
de falar sobre as coisas Agora só escuta É mau quando só escutamos A Rute não
devia pensar tanto na vida O pessoal dos correios esteve aqui ontem a fazer uma
mini manifestação de protesto contra o encerramento de mais uma dependência
Andam a fechar tudo, a acabar com tudo A Rute estava habituada a fazer este
trajecto e esta vida há mais de trinta e oito anos e agora querem enviar os
trabalhadores para muito longe daqui, para outras estações e dependências muito
afastadas Aos mais antigos convidaram acenaram com a reforma antecipada, ou
então que desaparecessem A Rute nunca mais chega e não atende o telemóvel O
Carlos Alberto tinha-a convidado para o cinema mas ela nem assim se mexeu A
boca não deixa, os olhos não deixam mas, acima de tudo, a idade não deixa Vou
sentar-me ali junto ao jardim Os bancos estão gastos como o tempo, como eu,
como os cães vadios que parece que nascem por aqui Vou ligar ao Arnaldo, pode
ser que já tenha acordado Nada Que bem que me sabe este café Estamos todos cada
vez mais sós, como a Rute, como o Arnaldo, como o Carlos Alberto e como eu
Caramba Mas que raio de conversa de velhos Tudo parece velho, gasto, louco,
cansado Os putos correm com as mochilas às costas Faltaram à escola Devem
gostar do que por lá ensinam Preferem correr em grupos, vadiar por aqui Que
inveja lhes tenho, como gostava de poder ser como eles, pecar como eles
Maldição do tabaco, malabaristas do eu contra o mundo que não os conhece Não
sabem como era antigamente, não lhes interessa o ontem, nem o amanhã e o hoje,
para alguns, veste-se de tristeza, de fome e de porrada Ordens dadas umas atrás
de outras que devem cumprir Está bem está Fartinhos dessa merda toda, das
conversas desses chatos que só moem a cabeça A utilidade de um beijo é que
devia ser ensinada, a utilidade de uma falta bem dada, de andar de metro à
deriva das estações, de fugir A Rute não está bem Vai ter de ser ela a ligar Já
não me apetece este banco Vou continuar a caminhar pela avenida mas aborrece-me
o não conseguir parar de pensar, parece que todas as minhas ideias e
pensamentos têm uma voz e um rosto Todas falam e é um cansaço terrível logo ao
fim da manhã Vejo-as com caras de velhas que não se calam, vozes com caras de
funcionários pálidos de óculos e de pele baça sentados em cadeirões e que não
param de teclar, a mão direita agarra e brinca com um telemóvel esperando que
toque, esperando não sei muito bem o quê Vejo vozes com caras, mais de mil e um
rostos, rostos de putos, de jovens, de operários fabris, de pastores, rostos de
políticos, de escritores, de psiquiatras e de empregados de café, vejo uma voz
com a cara de uma pequena criança que ainda mal consegue andar, em todas as
minhas vozes eu vejo um rosto É uma canseira Por isso olho para os carros que
não avançam na avenida, olho para as montras gastas, para todo este povo que se
movimenta O que será que pensam, porque será que pensam, ou não pensam, o que
os preocupa, porque se preocupam Precisava de descansar mas não consigo resistir
ao apelo das escadas do prédio, descer e vir para a avenida passear Outros como
eu também andam por aí meio perdidos, sentam-se, distraem-se com conversas
fúteis sobre coisas inúteis, sobre cada coisa mais inútil que chega a meter dó
Detesto quando as vozes me dizem estas coisas Mais valia dar uso à receita que
me passou o colega do meu filho Tanta gente fala e pensa saber sobre tanta
coisa, pensa saber sobre tudo e sobre mais alguma coisa, até dói E a Rute que o
diga Não me responde Continua com o telemóvel desligado Os autocarros seguem
tão apinhados que é difícil perceber como se movimentam Avançam alguns metros e
param junto aos outros metálicos animais que estão anichados a aguardar a
ditadura dos semáforos A cidade caótica engole-os, esvaziou-lhes as almas Vou
ligar ao Arnaldo mais uma vez São quase dez e meia da manhã O que terá andado
ontem a fazer para ainda estar a dormir Nada Desisto Quero lá saber Eles depois
que me liguem O avião passou tão rente ao prédio que o fez tremer Vou descer a
avenida até ao teatro São pouco mais de quatro quilómetros Gosto de passar
junto ao relvado que se estende à frente do edifício Os estudantes
universitários gostam de se estender ali como se estivessem na praia e eu gosto
de os ver assim Depois regresso ou então continuo o percurso até ao estádio
universitário Vou recordar os meus tempos de corredor Divertia-me a correr como
criança, sujava os pés e as pernas nos corta-matos e alcançava sempre a meta na
primeira metade da tabela Nunca desisti uma única prova, conclui-as todas Os
carros continuam parados Que loucura Ninguém se mexe no trânsito caótico O que
será que os impede de largarem a porcaria dos automóveis e caminharem ao longo
da avenida Trago aqui na carteira a receita por aviar, vou deixar de ser
casmurro e vou arranjar os comprimidos O meu Arsénio está cansado de me avisar
e ficou ofendido com a minha teimosia Deixá-lo Lembro-lhe que tem a quem sair
Detesto quando as vozes ditadoras me dizem estas coisas Pararam de falar comigo
por instantes Devo estar a melhorar Era bom se assim acontecesse Na
brincadeira, o rapaz até me disse para eu começar a escrever, para apontar num
caderno tudo aquilo que as vozes me dizem A minha mão não iria conseguir parar
tantas são as palavras abertas no interior da cabeça E depois, onde ficava
tempo para os passeios, para as conversas com a Rute, com o Carlos Alberto e
com o Arnaldo Eu não quero saber o que me dizem as palavras, a maior parte do
tempo são disparates como este agora Disparate, um disparate pegado Querem lá
ver que tinha de andar sempre carregado com um caderno e caneta para apontar
todos os pensamentos Tenho lá cabeça para isso e não quero saber do que as
vozes me dizem, estas vozes com rosto que nunca me abandonaram desde que me
conheço Uma coisa prometo Vou comprar um caderno e uma caneta, não são pesados
e passam-me a fazer companhia Pode ser que depois, com o medo e a vergonha, as
chatas das palavras definhem Não ia precisar de comprimidos Talvez a ideia do
Arsénio tenha pernas para andar, quem sabe Esta voz tem cara de senhor forte,
muito forte, cabelo curto, grisalho, bigode, pescoço curto e vigoroso, olhos
castanhos, olhar sério e ausente O que é que isto interessa Filas intermináveis
de pessoas nas paragens dos autocarros Que dia A esta hora, noutras ocasiões,
não é costume estar tanta gente à espera A cidade consome e mal trata e as
faces de todos os que esperam estão verdes e amareladas, derrotadas por um
cansaço eterno que as faz desaparecer Esta é uma voz com rosto de idosa, meio
andrógina, de cabelo curto, óculos, ar adoentado com minúsculos olhos escuros
Consigo ver o que tem vestido, um casaco de tom acastanhado, calças mais
escuras que o casaco, vincadas, sapatos masculinos com pequeno salto e um lenço
largado à volta do pescoço de cor beije Mais um avião enfurecido desce farto da
viagem, ansioso por aterrar Nesta zona da avenida as esplanadas enchem-se de
idosos que engolem cafés, lêem jornais e olham vazios para um ponto distante
24
de Março 2012
Escrever qualquer coisa todos os dias
Escrever qualquer coisa todos os dias A cidade
continua a engolir os habitantes Como formigas, entram nas entranhas da terra
pelas estações do metropolitano, entram nas carruagens apinhadas, aguardam o
destino, aguardam sentados, aguardam de pé, apertados, ensanduichados uns
contra os outros, olhares distantes, ausentes, o mendigo mendiga, a criança
adormece ao colo da mãe, o ruído do gigante vermelho que transporta as formigas
nos túneis, que os envelhece, que não tem coração nem intestinos, nem
entranhas, só corpo e função e velocidade A cidade vive de quem nela mora, de
quem a visita, de quem a procura, de quem não a suporta, de quem a deseja mais
do que a vida, de quem a desconhece mesmo que nas avenidas e praças se
espreguice há tantos anos que já lhes perdeu a conta, e são tantas as cidades
dentro da cidade
25
de Março 2012
A cidade doente
A cidade doente, de habitantes doentes vencidos pela
rotina, pela ilusão de bem-estar, pelas oportunidades de sucesso e pelo estilo
de vida que a cidade lhes vai acenando A cidade que já não deslumbra Desespero
como os automobilistas desesperam no trânsito caótico e eu desespero porque não
desistem Deviam saltar das máquinas que os consomem, abandoná-las, seguir novos
caminhos, outras vontades e destinos Desespero pelas horas e dias inúteis em
que se consomem estas vidas numa alienada realidade que corrói a esperança e
desesperam Envelheci A Rute, o Arnaldo e o Carlos Alberto envelheceram e a
cidade sempre presente, animal feroz que prende os movimentos, que agrilhoa os
que tentam avançar mas que, como eu, lhe escutam as vozes
26
de Março 2012
Vingo-me na cidade
Vingo-me na cidade opressora com palavras
Desumanização de betão e asfalto, de ruído e poluição, do anonimato que recheia
a urbe onde não há silêncios A cidade formigueiro, ávida, cruel,
indisciplinada, escura e cinzenta onde até o céu se deixa contaminar e altera o
tamanho dos sonhos Sigo na avenida pelo passeio cheio de quem anda perdido,
despido, sem planos e de rostos fechados A cidade atrofia e as quedas são em
maior número que os voos Os prédios crescem, nascem, estão cada vez mais
mortos, sujos velhos e gastos Orientam a cidade como um polvo colossal que se
expande e se dilata totalmente desorganizado, descoordenado, desorientado, que
se expande como um colossal bloco demente, uma entidade viva deslizante que
aniquila toda a natureza envolvente Não se vive apenas se sobrevive Descarrego
a fúria na cidade porque ela penaliza e não simpatiza com quem a habita A
cidade não aceita o erro, descarna a essência de quem se move nos seus
passeios, nas ruas e vielas, nas pracetas, largos e nas avenidas Se escrevesse
ficava vazio, cansava-me, penalizava-me e assim é bem melhor pois avanço com o
ruído das vozes e a companhia dos seus rostos enervantes Quem me fala é uma
mulher com cerca de quarenta e seis anos de idade, pele manchada e testa
enrugada, instável, neurótica com um olhar fatigado de cabelo desalinhado e que
veste roupa que já não pertence a estes dias
27
de Março 2012
Os dias e as noites
Os dias e as noites descrevem ruídos que sobem de
tom e que descrevem conversas com nuvens negras e dores que descrevem
indecisões e inícios atribulados e que vontade tenho de acabar com todos os
edifícios que a cidade viu nascer todas as pontes todos os lugares acabar com
tudo de uma vez por todas Acabar com a cidade cansada com todos os castelos e
palácios e silêncios e muralhas A cidade cansa e as palavras continuam a
aparecer e eu vejo O rosto de quem me fala com esta voz agressiva tem lábios
finos e olhos de quem suspeita Uma voz que ecoa e ressoa e enerva Regressam as
palavras do Arsénio a insistir a remorder a avisar Vai aviar o medicamento pai
deixa de ser casmurro e vai aviar o medicamento A farmácia brilha como uma
chama incandescente que saltar do seu interior como um relâmpago e destrói tudo
em redor Acabou o passeio e nasceu o asfalto Até ao lado de lá da avenida
estende-se a passadeira a desenhar um caminho Entre as duas vias o parque
estende-se longitudinalmente acompanhando a avenida Páro junto ao pequeno lago
que faz parte deste rectângulo de verde Vou desligar o botão que fará
desaparecer a cidade que a fará desaparecer para todo o sempre como se nunca
tivesse existido Manifesto a minha preocupação por estes pensamentos Esta voz
nervosa tem rosto de senhora com sobrancelhas arranjadas rosto fechado olhar
inquieto Uma voz que soa sofrida com a cidade As nuvens tapam o sol mas o calor
mantém-se Os automóveis continuam a apinhar as ruas e as avenidas sem avançar
num cansaço permanente que gasta as vidas no tráfego eterno Tráfego diário
caótico desesperante Quero ver o mar e neste pequeno lago só vejo a água
esverdeada com pequenos toques rubros aqui e acolá Salvem estes peixes
Tirem-nos daqui e tirem-nos a todos da cidade Tirem toda a gente da cidade e
tirem de uma vez por todas a cidade daqui Tirem-me este cenário da frente e
tirem-me as vozes de dentro de mim As pessoas seguem cinzentas e automáticas
pelo parque Avançam na avenida pelos passeios e acessos a viadutos e a pequenos
túneis com escadas por onde descem e sobem mas não avançam seguras Escuto e não
queria escutar Estou quase a chegar onde o sinal vermelho manda parar e onde
mais nada se move Os peões atravessam a avenida passando por cima dos
automóveis que pararam e tapam a passadeira Saltam por cima das viaturas que
preenchem a cidade de uma ponta à outra Saltam os condutores e passageiros de
dentro das viaturas e começam a discutir uns com os outros Regressam ao banco
dos seus automóveis iguais pois ninguém muda Somos o que somos e a cidade acaba
por aniquilar o que de bom ainda existia em cada um de nós É um tormento
Avançamos pela cidade num passo cada vez mais lento e demorado Mesmo assim
somos mais rápidos que o trânsito caótico apático e claustrofóbico É uma loucura
São agora mais de vinte os rostos destas vozes Uma é melodiosa outra estridente
Uma enervante outra irritante Uma tem rosto de voz delicada e destaca-se das
demais Mas que interesse poderá tudo isto ter para alguém Que interesse Nenhum
absolutamente nenhum Pode não ser o real pode ser apenas uma mera ideia mas eu
ficaria mais aliviado se nenhuma destas vozes me enervasse e se alguma delas
fosse capaz de matar esta batalha de linguagens que nasceu dentro de mim Acabem
com isso Caluda Raios vos partam Escrever isto para quê para ordenar o que não
se ordena o que não tem ordem Escrever isto para tornar límpido o que mata
amputa e destrói Como esta entidade viva chamada cidade que mata amputa e
destrói Vou sair do parque vou continuar Na avenida nada mudou Tudo está parado
imóvel ruidoso Passo para o lado de lá desta imobilidade e deste lado do
passeio olho para trás para aquilo que percorri Tudo parado Milhares de
viaturas de onde saem milhares de pessoas que agora olham por cima dos tectos
tentando entender a razão para esta inércia Vozes estalam cada vez mais
violentas no centro da cidade Avanço na direcção do teatro mecanicamente Não
sei porque me preocupo com a cidade É uma vontade que me morde e eu obedeço-lhe
Com dificuldade vou calando este ruído intenso que me massacra Esta voz tem
rosto de mulher jovem e segura que desenvolve e descreve o seu raciocínio num
tom nasalado As maças do rosto são marcadas e o cabelo cuidado As suas palavras
irritam mais do que magoam Ao longe vejo uma farmácia vejo duas vejo três e não
cedo Não ainda Sai de casa para me abandonar no ambiente da cidade até não
poder mais A cidade que já não tem nada para me oferecer a não ser a sua
própria existência É isso que me permite existir e que permite que o desabafo
exista e os silêncios não Está mais perto a visita ao farmacêutico e aqui estão
os jovens Felizmente que alguns parecem não fazer parte deste universo
Abandonaram as salas de aula abandonaram as paredes abandonaram os corredores e
são verdes como a relva onde repousam Quero ser assim também ter a idade que é
a deles que já foi a minha e que a cidade engoliu Esta é a voz de um homem
africano de olhos negros e pequenos com sobrancelhas carregadas barba mal
aparada cabelo curto e testa vincada com fortes rugas de expressão É arrogante
e fala como se entendesse tudo sobre todos os assuntos e sobre todas as
matérias Não erra tudo sabe e tudo compreende Farto estou verdadeiramente farto
destas vozes e destes rostos que me falam Vou ser um pouco desta relva para
poder deixar de dizer mal da cidade mas não consigo Estou zangado com ela e
quero continuar a desabafar desta maneira sobre a cidade Repetidamente
desabafar Não gosto da cidade Ela aproveita-se dos habitantes para crescer e
engordar para submeter e subjugar Rostos sobretudo rostos cansados vivem na
cidade que cansa Cansou os donos das vozes que me odeiam e que fazem ferver
esta memória Vou comprar um caderno e uma caneta Prefiro isso aos medicamentos
Não prescindo da minha saúde e sei que esta loucura vive agora em mim como a
cidade Quero dar cabo da cidade e da minha loucura Vou destruir-lhe as
entranhas e convoco para o combate estes jovens enamorados que ainda escutam o
coração Que merda E agora asneiras porque são palavras como qualquer outra
Merda e mais merda para a cidade que destrói Merda para a cidade das vozes das
doenças e dos amigos que envelhecem e se deixam derrotar sem combater
28
de Março 2012
Preciso de respirar
Preciso de respirar A cidade não deixa Vou partir
Depois deste dia, vou-me embora daqui Se nada me prende e tudo me perturba, se
as vozes não me largam e não se calam, vou partir Tudo depois deste descanso
está igual, imóvel, caótico, quente, metalizado, claustrofóbico, sujo, poluído,
velho, gasto, carcomido e cinzento A cidade nefasta Vingo-me nela com esta
oferenda de palavras A cidade não é solidária, a cidade é coisa, é coisa
gigante e como coisa gigante que é desumaniza quem a percorre e quem dela se
tenta alimentar Virar a cidade ao contrário de pernas para o ar não vai
resolver o problema Os seus interiores vão esventrar ainda mais as entranhas da
terra As mais altas construções da cidade vão ferir de morte o que resta do
ambiente Esgotos a céu aberto, canais subterrâneos, túneis e as catacumbas
obscuras das mais antigas lembranças da cidade ficarão a céu aberto, serão a
nova equação caótica por onde teremos de caminhar, de viver e de sobreviver Com
esta reviravolta a cidade não se destruirá mas destruirá quem nela habita A voz
que me fala tem rosto de menina jovem com olhos grandes, negros, pele clara e
cabelo roxo escuro cortado impecavelmente numa franja perfeita que cobre metade
da testa São muitas as sardas que lhe invadiram as bochechas e o rosto fresco,
redondo e sorridente Este foi o rosto da voz que me disse para virar a cidade
ao contrário e para a colocar de pernas para o ar Estou cansado mas ficar nesta
fila na paragem de autocarro a morrer devagarinho, isso é que eu não fico Antes
virar a cidade ao contrário e continuar a caminhar Jogar com os pensamentos,
deve ser isso que o medicamento é capaz de fazer Acalmar as ondas cerebrais
que, umas atrás das outras, me cansam e acompanham A cidade ri de mim ou pelo
menos assim parece É o que me dizem as pessoas apressadas que avançam
automáticas e desgovernadas pelo passeio Estou febril, sinto-me febril com a
cidade, mas ao contrário dela, que nunca se cansa, eu necessito repousar
29
de Março 2012
Tudo parou
Tudo parou Avanço por entre postes e candeeiros de
rua Avanço pelo meio das pessoas perdidas e paradas Tudo parou menos a cidade
porque eu não parei A cidade serve-me os seus habitantes como estátuas neste
gigantesco museu a céu aberto O planeta gira pois o sol dá conta que a manhã
termina As nuvens tapam-no e destapam-no por sobre os prédios O ruído da cidade
parou como as pessoas, parou o ruído e as viaturas e agora a cidade é o maior
museu que já visitei Os animais citadinos estão petrificados como nos anúncios
e documentários em que a câmara fornece o único movimento possível Aqui não se
trata de um anúncio ou filme ou documentário A cidade, com um toque similar ao
de Midas transformou em estátuas todos os que nela habitam, excepto eu Liguei à
Rute o telefone toca e não atende Liguei ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e o
mesmo aconteceu Estou receoso Será que se ligar ao meu filho Arsénio ele me
responde ou também ele estará petrificado E as crianças, e a Laura e a minha
irmã Isabel, como estarão Será que sofrem todos da mesma recente maleita da
cidade Assim acontece quase sempre As vozes chegam devagar, aconchegantes,
falam de coisas aparentemente banais e inofensivas e falam também de outras
menos banais e inofensivas e depois, após as primeiras horas da manhã, eis que
me dominam o pensamento de tal forma que me transformam completamente o dia
fazendo estalar e aumentar esta minha aparente loucura Hoje resolveram começar
por me dizer para caminhar sem rumo pelas avenidas e observar o movimento
descompassado e mecanizado dos seus viajantes Observei o caos em que a vida da
cidade se gosta de espreguiçar apenas para fazer de conta que ainda me preocupo
em tentar encontrar algum sentido para esta minha forma de loucura Vejo mas não
acredito no que vejo Toco nas pessoas e elas não me sentem, não se mexem, não
pestanejam Respiram, os peitos dão sinal Os corações dos habitantes não pararam
de bater Muitos foram os dias e principalmente as noites em que tinha medo de
adormecer Não sabia como o coração e os pulmões podiam continuar acordados
enquanto nós dormimos, enquanto descansamos Tive pesadelos terríveis em jovem
pois acreditava que o coração podia adormecer se eu não lhe desse ordens para
bater e eu morreria a dormir Porque sabemos como acordar Porque acordamos Quem nos
fornece essa ordem secreta para terminar o sono e dar início à aventura de mais
um dia Quem ordena aos pulmões que mantenham o seu ritmo para conseguirmos respirar,
para conseguirmos viver Porque não dormem os pulmões, o coração e tantos outros
órgãos de quem dependemos Porque não descansa o cérebro, como consegue ele ir mantendo
os sistemas a funcionar até ao fim As insónias que tive ao pensar demasiado nestas
questões Fico mais descansado por saber que os milhões de habitantes estão apenas
congelados neste instante e pertencem a um qualquer sono que as quer manter assim
Maldita cidade que me transformou neste ser doente com imagens e vozes e rostos
a invadirem-me todos os instantes da vida As imagens impossíveis que este rosto
me descreve só podem acontecer porque vivem na mente de alguém a quem a loucura
invadiu E se todos pararam, porque me movimento eu
Começar uma nova história. É uma aventura.
Maior ainda pelo tempo em que as anteriores me mantiveram ocupado.
Sinto esses Momentos demasiado perto. Estão ainda demasiado presentes.
Mas é tempo de reinventar... uma outra história... numa cidade.